As idéias esboçadas aqui vêm me interessanto há algum tempo. No entanto, só agora, estimulada por um colega que se dedica a divulgar informação técnica baseada em evidência em linguagem simplificada para praticantes de treinamento de força, resolvi começar a sistematizá-las. Isso é o começo da discussão – sem nenhuma preocupação com referências ou indicações mais precisas quanto aos dados. Isso virá com o tempo: como tudo aqui, esse material está em construção. Ainda são impressões gerais derivadas de um contato longo com a literatura das áreas de nutrição e atividade física – como consumidora, não cientometrista.
O interessante desses dois casos de controvérsia é que elas são camufladas e pouco visíveis aos próprios praticantes profissionais (cientistas, nutricionistas, médicos, educadores físicos). Isso só é possível porque ainda existe uma relativa hegemonia de um dos lados da controvérsia, em ambos os campos. Ela é visível para quem, então? Para o usuário intermediário da evidência científica marginal.
O colega em questão, que tem me chamado atenção para a dificuldade em fazer uso da evidência científica disponibilizada nos periódios mainstream, usa e oferece informação sobre treinamento de força e nutrição esportiva. As recomendações nutricionais disponibilizadas nos meios de comunicação como consensos (pseudo-consensos) são rigorosamente inúteis para usuários como ele. Esse tipo de usuário vive uma condição aguda de incerteza quanto à informação, uma vez que, paralelamente aos pseudo-consensos da comunidade científica legítima, formam-se “consensos alternativos” em comunidades de prática. Alguns desses consensos alternativos de fato conseguiram furar o bloqueio do conservadorismo científico e impulsionaram pesquisas, as quais têm levado à reformulação de perspectivas antes hegemônicas. Um exemplo disso é a necessidade de consumo proteico. Havia – e há, para parte da comunidade médica e de nutricionistas – um consenso quanto ao fato de que nem mesmo atletas necessitariam de mais do que 0.8g/kg de peso corporal de proteína na dieta. Praticantes de fisiculturismo ignoraram essas recomendações e passaram a utilizar proporções muito mais elevadas. Sem muita sistematicidade, essa comunidade foi observando que, sem essas proporções mais altas, não era possível obter bons resultados em ganho de força e hipertrofia. Hoje, a constatação de que as necessidades de consumo proteico podem chegar até a 1.8g/kg de peso corporal já atingiram a literatura mainstream em nutrição (no entanto, fisiculturistas usam muito mais do que isso, sem o benefício de pesquisas sistemáticas que ofereçam evidências confiáveis com as quais tomar decisões – tornam-se cobaias de si mesmos). Esse é apenas um caso, cuja lógica se reproduz em relação a suplementos nutricionais (creatina, glutamina, etc.) e outras questões.
Nos casos acima, o prejuízo para o usuário final da informação (atleta ou paciente) não é grave a ponto de colocar em risco sua vida. Em outras situações, no entanto, infelizmente os falsos consensos podem causar sérios danos à saúde pública. É o caso da ênfase exagerada nos exercícios aeróbios como adjuvantes em tratamentos como os da diabetes, em detrimento do necessário exercício de força. Somente uma massa muscular maior e mais treinada pode beneficiar um portador de diabetes na estabilização de sua glicemia. São a massa e metabolismo da musculatura esquelética os responsáveis por essa regulação – e não o condicionamento cardio-vascular. Ou seja: diabético tem que puxar ferro, e não (apenas nem preferencialmente) dar caminhadas no parque. O mesmo se aplica a idosos em processo de perda de suas capacidades funcionais.
Talvez meu papel seja um pouco fazer uma ponte, traduzindo essa sensibilidade dos usuários de ponta da informação em ações que modifiquem a condescendência com os falsos consensos, evidenciando o estado de controvérsia e incerteza. Há um projeto em vias de ser viabilizado na BIREME (www.bireme.br) que se refere a necessidades de informação técnico-científica em nutrição e atividade física. Eu o elaborei com essas preocupações em mente – entre outras. Quanto mais for possível perceber indicadores de necessidades não satisfeitas e problemas com a informação técnica, melhores serão as chances de intervir eficientemente no problema. Portanto, agradeço qualquer feedback no assunto.
Controvérsia
A controvérsia é, em maior ou menor grau, o mecanismo responsável pela mudança científica. O antropólogo Bruno Latour descreveu o processo de esoterização, e, portanto, de sofisticação técnica, metodológica e teórica, que ocorre ao longo das controvérias científicas em seu clássico Science in Action (1985). Assim, a controvérsia seria a base do progresso científico, embora alguns autores evitem o conceito. A introdução de inovações produz a clássica estratificação da comunidade de praticantes segundo um gradiente entre um extremo de inovadores, ou risk-takers, e retardatários, ou risk-averse. Essa estratificação está relacionada principalmente à estrutura social (hierárquica, institucional e generacional) da comunidade em questão. No entanto, a inovação está, geralmente, associada à controvérsia. O sucesso ou fracasso de sua introdução como parâmetro de prática ou de modelo teórico estão relacionados, nesse caso, a um jogo de interesses que mobiliza um grande esforço de articulação da informação científica existente e interpretação do lugar de cada evidência no quadro da controvérsia. A elite da comunidade controla o jogo e produz o discurso argumentativo que se expressa na produção científica do momento. Quanto menos diretamente envolvido na controvérsia estiver o praticante, e, portanto, mais distante do centro de poder da comunidade, menor a familiaridade com os argumentos e maior a perplexidade diante do conflito. Os praticantes menos envolvidos, que constituem a maioria da comunidade, tendem a ser risk-averse ou retardatários nessas circunstâncias. Kuhn (em The Structure of Scientific Revolutions, 1971) e outros representantes clássicos da sociologia da ciência interpretam a resistência típica da comunidade científica à mudança como produto de um conservadorismo intrínceco, de uma dificuldade em se desvencilhar da visão de mundo associada ao velho paradigma. Essa resistência pode ser interpretada, alternativamente, como resultado da dificuldade de “make sense” da massa de nova informação produzida sob os eixos da controvérsia. As comunidades envolvidas em controvérsia têm, portanto, uma relação mais crítica com a nova informação técnico-científica da área e possivelmente apresentem necessidades especiais, como ferramentas, produtos e formatos de disponibilização de informação que dêem maior visibilidade à controvérsia e às tomadas de decisão implicadas nas alternativas em jogo.
Nutrição
As fontes de controvérsia na área da nutrição são muitas e variadas. O boom da abordagem nutricional à patogênese das doenças degenerativas, nos anos 70, provocou uma transformação profunda nas estratégias de tratamento. De uma “onda alternativa”, a abordagem nutricional tornou-se mainstream. A ocorrência de cânceres como os de cólon, mama e próstata foram associados a dietas ricas em gorduras saturadas e a redução da porcentagem de gordura e substituição das mesmas por gorduras insaturadas foram incorporadas aos tratamentos em praticamente todos os países. A importância de fibras, frutas e verduras na prevenção destes cânceres só começou a ser questionada e verificada agora.
Por outro lado, os resultados das pesquisas sobre os componentes da dieta associados à patogênese, à prevenção e à cura de doenças têm sido inconclusivos e contraditórios. Por exemplo: o consumo de soja foi associado a uma menor ocorrência dos cânceres de mama e próstata e as isoflavonas presentes na semente mostraram atividade biológica in vitro. No entanto, algum tempo depois de divulgados estes resultados e da indústria nutricêutica inundar o mercado com produtos à base de ginestein (a isoflavona com maior atividade biológica in vitro), pesquisas revelaram que a substância isolada não só não se associa a uma menor incidência de câncer de mama in vivo como pode estar associada a um aumento na incidência.
Outro tema imerso em profundo conflito é o das Recomended Daily Allowances (RDA). Defensores dos valores oficialmente estabelecidos pelas agências nacionais de saúde (mais “conservadores”, menos “risk-takers”) argumentam que a suplementação dietética é desnecessária e potencialmente maléfica, uma vez que uma dieta balanceada, contendo quantidade suficiente de alimentos frescos e de origem vegetal deve suprir as necessidades diárias de vitaminas. Além disso, argumentam, o ser humano não necessitaria de mais que 0.6g/kg de peso corporal de proteína (com a exceção de algumas categorias de atletas e crianças, que necessitariam de cerca de 0.8g/kg de peso corporal), quantidade facilmente encontrada numa dieta onde o consumo de leite, ovos e carne ocorra com frequência diária moderada. No entanto, pesquisas recentes contestam tais dados. Em primeiro lugar, as quantidades mínimas de vitaminas não estariam presentes nos alimentos – ainda que adquiridos frescos – disponíveis aos habitantes urbanos. Em segundo lugar, valores bem maiores nas quantidades de diversas vitaminas parecem estar associados à prevenção de efeitos degenerativos, o que indicaria que a verdadeira necessidade diária é bem maior do que aquela oficialmente recomendada. Além disso, as ciências do esporte (medicina esportiva, nutrição esportiva, etc.) têm produzido resultados de pesquisa que demonstram que as necessidades de consumo proteico na população em geral e nos atletas em particular é muito maior do que os valores da RDA. Milionários interesses comerciais ligados à alta performance esportiva (além de uma igualmente milionária indústria de suplementação esportiva) alimentam a intensificação das pesquisas sobre a otimização do suprimento energético, minimização do catabolismo proteico e fadiga muscular, maximização do anabolismo proteico e de glicogênio, maximização da mobilização de reservas energéticas e muito mais. As evidências cada vez mais abundantes têm confrontado concepções convencionais a respeito das necessidades nutricionais não apenas dos atletas – o que gerou uma sofisticada área de tecnologia nutricional e manipulação nutricional do desempenho esportivo -, mas de categorias críticas como convalescentes e crianças.
As desordens da alimentação (eating disorders) são talvez o maior foco de atenção e nicho de agressivas controvérsias na área da nutrição. Em primeiro lugar, o diagnóstico físico das condições está associado a indicadores não consensuais. A relevância das tabelas de distribuição média de peso e altura, do índice de massa corporal (BMI), da porcentagem de gordura corporal e de massa magra, são amplamente debatidos. Que valores e de que indicadores caracterizariam baixo peso, sobrepeso e obesidade não são questões consensuais.
Em segundo lugar, as estratégias de tratamento para a obesidade e para controle do peso são diversas e contraditórias. Certos aspectos do metabolismo energético diretamente envolvidos na perda e manutenção dos tecidos adiposo e muscular estão envolvidos em pesquisas cujos resultados têm sido contraditórios. Não há consenso na comunidade em relação a eles.
Finalmente, a manipulação e tratamento nutricional de desordens neurológicas, psiquiátricas, endocrinológicas, entre outras, estão imersos em ainda maior incerteza. Nestes casos, ainda estão longe do mainstream e, embora muitas pesquisas gerem resultados promissores em direção a tratamentos seguros, de baixo custo e eficientes, a massa de informação disponível ainda é proporcionalmente pequena e de pouca visibilidade.
Atividade Física
A área da atividade física é ainda mais permeada por controvérsias. A atividade física se relaciona com a prevenção e tratamento de doenças cardio-vasculares, endocrinológicas (particularmente a diabetes), reabilitação pós-trauma, prevenção e tratamento da obesidade, prevenção e tratamento dos efeitos degenerativos do envelhecimento, desenvolvimento infantil e prevenção das desordens do sedentarismo em geral. Uma última, pouco conhecida (pequeno número de publicações de baixa visibilidade) e polêmica intervenção da atividade física é na prevenção e tratamento de desordens mentais.
No entanto, não há consenso quanto à relevância proporcional da atividade física em relação a outras intervenções de tratamento e prevenção (medicamentosas, nutricionais, etc.). Por enquanto, a maior parte dos estudos aborda a atividade física como adjuvante no tratamento medicamentoso. Quanto à prevenção, existem muito poucos estudos epidemiológicos relacionando intensidade e principalmente tipo de atividade física com o efeito preventivo.
A maior parte dos estudos utiliza, como intervenção de atividade física, um determinado período de atividade aeróbia (em geral bicicleta ergométrica pela facilidade de controle) de baixa intensidade. Existem poucos estudos com variação na intensidade, duração e frequência da atividade aeróbia e menos ainda com exercício resistido (exercício de força). As poucas evidências a respeito dessa última categoria de atividade física sugerem maior eficiência da mesma na maioria das condições elencadas acima. No entanto, essas evidências publicadas são bem poucas e de baixa visibilidade.
Os médicos não têm como prescrever adequadamente atividade física para o tratamento das doenças e, pior, não têm noção da polaridade das controvérsias. Assim, as associações e centros médicos indicam, na maior parte dos casos, um período de caminhada diária como atividade física preferencial.
Os profissionais da atividade física, por sua vez, também não têm acesso às evidências recentes sobre o efeito das várias modalidades de atividade nas condições de saúde e prescrevem estratégias aleatóriamente, sem conhecimento sobre a ação de cada programa.
Finalmente, existe baixíssima interação entre as comunidades: as de médicos e as dos profissionais de atividade física. A consequência dessa baixa interação é que as demandas por informação não são socialmente geradas segundo uma vivência integrada do problema. Assim, a satisfação da demanda tende a ser sempre parcial e incompleta.
Marilia