Epitáfio

Essa música tem uma história para minha geração e para mim. Acho que não há muita dúvida sobre a relação, não importa o quão direta, entre a letra e a morte de Marcelo Fromer. Marcelo era guitarrista da banda e membro da formação original dos Titãs.

A banda se formou no colégio Equipe, aqui em Sampa. Eu estudava lá. Aliás, no mesmo ano e sala de um deles, acho que do Nando, que namorava uma amiga minha. Eu era de outra turma, a dos comunistas chatos. Comunistas chatos não se davam com os artistas, basicamente porque nós éramos chatos e achávamos que eles eram babacas (sendo a recíproca verdadeira).

Marcelo morreu aos 39 anos, em 2001, atropelado por um motoqueiro. Epitáfio foi lançada em 2002.

Em 2001 eu tinha 37 anos – essa geração toda tinha por aí, entre 36 e 40. É uma idade engraçada, onde supõe-se que você já cumpriu uma parte substancial da vida e trilhou o caminho central dela. Era o caso deles: a banda era um consenso de sucesso e qualidade. Eles “deram certo”. Do meu jeito, eu também tinha “dado certo”: terminei meu doutorado aos 31 e aos 34 fui para os Estados Unidos fazer meu pós-doc.

Mas em 2001, aos 37, meu mundo ruía. Meu segundo casamento estava acabando em desastre. Ironicamente, meus grandes projetos acadêmicos também, incluindo a própria carreira. Era o fim da inocência.

Acho que essa é a hora em que começa a cair a ficha de que morrer é para qualquer momento. Para mim, sempre foi, pela minha condição. Em pessoas relativamente racionais e relativamente saudáveis, no entanto, essa ficha tem um momento para cair. É quando mais faz sentido a idéia de que arrepender-se pelo que se deixou de fazer é terrível.

A letra é o discurso do morto que sacou isso tudo tarde demais. Ele devia ter amado mais e feito o que queria fazer. Mas não fez.

Ontem me perguntaram o que ainda faltava para mim. “Nada”, respondi. Fiz tudo que eu queria fazer. O que eu não fiz, não foi por falta de tentar. Não devo nada para mim mesma. Ter feito tudo que se queria não é uma coisa para se dizer num fim previsto. Muita gente pensa assim. Temos essa idéia do velhinho sorrindo, olhando o sol se pondo num horizonte bucólico e dizendo “fiz tudo que eu queria fazer”. Acho isso um perigo. É essa a perspectiva que nos faz passar a vida perseguindo algo que alfinetamos no futuro do nosso quadro de avisos.

Não estou cagando regra, eu era exatamente assim. Até o momento em que me deram um prazo de validade de dois meses (em 2005).

Meio que eu corri atrás do prejuízo e prometi a mim mesma nunca mais passar um dia em que eu não pudesse dormir dizendo que sim, fiz tudo que eu queria. Que não deixei de amar, de realizar algum projeto, ou de aprender, em nome de nada. Que não abri mão de nada, por ninguém.

As pessoas que abriram mão de coisas alegando ser por minha causa só receberam uma coisa de mim no final das contas: raiva e ressentimento. Principalmente homens.

No balanço, com todas as besteiras que eu fiz, esse ano foi o melhor não só por eu ter feito tudo do meu jeito, mas por eu ter feito tudo.

No meu epitáfio, não haverá um “devia”.

Não devo nada à pessoa mais importante da minha vida: eu mesma.

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