Nós e a mídia de entretenimento – lições de uma gravação

Ontem fomos gravar um episódio num programa televisivo de entretenimento da TV brasileira.

O problema já começa daí: quem somos “nós”? A produção, que já havia gravado alguns programas com alguns atletas de esportes de força, programas cujo conteúdo criticamos bastante, procurou ao Marcos Ferrari e a mim para executar o projeto. Nós pontuamos desde o início que executaríamos desde que fôssemos também responsáveis pela orientação geral. E, veja que generosos nós fomos: nem cobraríamos por isso.

Evidente que se trata de uma ironia: “pesquisa” é parte da execução de qualquer projeto que contenha qualquer dose de informação. Esse papo de que “isso é só entretenimento” reflete apenas um imenso desconhecimento do que é entretenimento e sua relação com informação e comunicação em geral. Se tem informação sobre fatos da realidade, então deve haver pesquisa.

Nós sentimos uma grande ansiedade por parte da produção em conduzir um programa bem sucedido, mas uma espécie de surdez quanto às nossas recomendações. Se o programa tratar de “reciclagem de pneus”, alguém tem que no mínimo dar um Google nas palavras-chave mais importantes e se entender com a temática. Isso deveria ser responsabilidade de um indivíduo na equipe. Como percebemos que esse indivíduo não existe, nós nos propusemos a suprir a deficiência. Não deu certo.

É impossível produzir um roteiro que tenha lé com cré sem pesquisa.

Não existem culpados nesta história. Os problemas são estruturais e o buraco é bem mais embaixo. Como tantas outras coisas, a mídia de entretenimento brasileira está descolada da realidade do consumidor do entretenimento por problemas de GESTÃO. Os funcionários da produção vivem sob angústia e insatisfação. O projeto de cada show é mal organizado, a pesquisa não é feita, as tarefas ficam emboladas. Não existe pesquisa de mercado, e muito menos análise etnográfica para entender os aspectos culturais da reação do telespectador e adequar o conteúdo. A divisão de tarefas é precária. A compreensão do sistema de administração de projetos, cronograma, planilha de execução é inexistente.

O setor mais ágil e organizado que eu vi foi a sala de maquiagem. Por que a sala de maquiagem funciona? Não é brincadeira, embora de fato seja onde eu tenha mais me divertido. Porque ali, todo mundo sabe sua função e executa corretamente. O resto anda perdido, faz reuniões inúteis, não consegue usar informação para tomar decisão, e disso… putz, disso eu manjo. Fiquei com pena dos funcionários de maneira geral e com a certeza de que os gestores da empresa são… são… BRASILEIROS!

Quando o programa aborda o esporte, problemas específicos se somam aos gerais. Pelas deficiências acima, a produção não tem como entender em que sentido o esporte pode ou não “entreter”. Assim, aplica o batido modelo da palhaçada, ou humor pasteurizado, que sabe-se lá por que motivo se institucionalizou. Ninguém mediu nada para saber se é o que funciona melhor para garantir pontos de audiência.

A aplicação deste modelo gera um conflito sério, que é aquele limite tênue entre o aceitável e o ridículo. Se cair no ridículo, prejudica o esporte e os atletas, além de deseducar a população. Eu creio que o de ontem ficou no aceitável. Certamente não entrou para a categoria do bom, muito menos do ótimo. Veremos na segunda-feira.

A responsabilidade por tornar o programa aceitável e não ruim foi exclusivamente de Marcos Ferrari, que teve a presença de espírito de tomar as rédeas do conteúdo e conduzir na medida que pode o programa todo. Mas “a medida que pode” infelizmente foi aquém do que seria o bom – tanto para nós, como para o público, como para a própria emissora. Sorte, para o público brasileiro, que se trata de um atleta ético, culto e inteligente. Não foi o caso de programas anteriores.

Nós aceitamos participar do programa por dois motivos: gerar percepção pública quanto à existência e necessidades dos esportes de força e seus atletas e, certamente, fortalecer o ciclo econômico de sustentabilidade do esporte.

A pergunta que eu quero ver respondida diz respeito a uma coisa chamada ROI: return over investment. Ninguém ali recebeu remuneração em grana, mas numa economia de mercado, nós, que geramos conteúdo, e portanto receita para uma empresa de entretenimento, supostamente fomos beneficiados por alguma troca. “Educação para o esporte” não foi exatamente, ou apenas muito indiretamente. Existem os seguintes atores neste ciclo: 1. a empresa de entretenimento (essa já tem o lucro como dado e nós fomos o substrato); 2. os atletas, representando a si mesmos, e ao “esporte”, ente abstrato; 3. as empresas que investem em nós (atletas e esporte); 4. o público (consumidor de entretenimento, na forma de informação e humor). É importante entender se empresas patrocinadoras como a Fast Nutrition a Jorge Reis Manipulação Farmacêutica, no meu caso, enxergam alguma vantagem na microscópica exposição de marca propiciada. Caso contrário, é um tiro no pé, pois esse é o ciclo econômico de produção de PERFORMANCE, materializada em nós, atletas. Eu encaro essa experiência como um laboratório e quero MEDIR isso tudo: como cada parte deste ciclo econômico avalia seu benefício. Só assim nós, que somos o sujeito do episódio, do “fato comercial”, podemos tomar uma decisão quanto a futuras oportunidades semelhantes.

Os atletas e atores do campo esportivo precisam ser sérios e sóbrios. Conhecendo essas deficiências, jamais cair no oportunismo de chamar a si algum mérito indevido. Por que eu estava lá? Por vários motivos não necessariamente relacionados a ser a mais representativa atleta do powerlifting: estar em São Paulo, ao contrário de Erica Bueno ou Ana Rosa Castelain? Estar disponível e ter horário de trabalho flexível, ao contrário de Eric Oishi ou Daniel Nacle? Ou ter batido mais forte e pesado no debate sobre mídia, a começar pelo caso das Panicats? Mas a última coisa que eu posso permitir é que uma oportunidade dessas gere a falsa impressão de que eu sou algo mais que estes outros (e mais outros) atletas. Isso cabe a mim – e a todos os atletas com ética. Eu tenho mérito, e sei disso. Mas outros também têm.

Como eu disse, os problemas enfrentados têm solução e ninguém que eu tenha encontrado ou com quem tenha interagido diretamente é culpado. Se os tomadores de decisão caírem na real, é possível melhorar isso tudo. Caso contrário…

 

 

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