A goteira na minha cabeça

Ontem caiu uma grande tempestade em São Paulo. Daquelas que parecem algo sinistramente apocalíptico, noturna, burulhenta e repleta de trovões, raios que iluminam através de janelas fechadas, som de coisas indistiguíveis caindo pelo mundo. Minha casa é térrea, de madeira, num bairro muito arborizado. Caiu de tudo, por toda parte.
Eu havia me deitado lá pelas 0:30h e me dei conta da tempestade quando senti água caindo no meu rosto. Era uma goteira. A goteira criou um fio de água que acertou precisamente o ponto em que encosto a cabeça no travesseiro. Durmo em geral sozinha numa cama grande de casal, mas sempre do lado direito, onde o colchão até mesmo já se deformou. Sempre com dois travesseiros. Sempre começo a dormir de lado. Sempre acabo virando de bruços, com um dos travesseiros. Gosto da minha cama, durmo mal em outras.
Quando a goteira me acordou, acendi a luz e me dei conta de que teria que afastar o colchão. Talvez dormir em outro lugar da casa.
Minha cachorra Rita, apavorada com tempestade, havia pulado uma janela e estava no corredor arranhando a porta do meu quarto. Não a deixei entrar e tentei dormir com o colchão torto, mas em poucos minutos percebi que seria impossível. Tentei outras alternativas no próprio quarto, enquanto Rita arranhava mais ainda minha porta e fazia outros barulhos pela casa. A essa altura, o outro cão, Akela, irmão dela, gania escandalosamente na porta da cozinha – ele não sabe pular janelas e odeia ficar de fora quando a Rita entra.
Levantei, abri a porta para o Akela, que entrou meio molhado, a Rita entrou no meu quarto e tentou subir na minha cama, que já estava torta, eu a expulsei e fechei a porta.
Coloquei um pano para absorver o pequeno rio de chuva que caia no estrado e me dei conta de outra goteira.
Já bastante cheia de pequenas decisões a tomar, senti fome – eram 2:30h e já faziam umas 4 horas que eu não comia.
Levantei para fazer um lanche e vi uma cena dantesca pela casa: os cães, sob stress, se comportam de maneira absurda. A Rita espalhou todo o lixo do banheiro da minha filha pela casa e o Akela virou o lixo da cozinha. Olhei aquilo com grande desgosto, dei broncas horríveis nos dois, expulsei-os para a sala e passei uma meia hora limpando tudo. Aí fui comer.
Quando acabei, não tinha mais sono, embora estivesse cansada.
O problema é que essa noite de sono era estratégica para mim, pois uma outra tempestade, menos literal, havia caido sobre minha cabeça horas antes. O diretor do órgão inter-governamental para o qual eu prestava consultoria havia abortado meu projeto após um período difícil em que finalmente ele tinha se concretizado. Consegui persuadir órgãos governamentais a financiar a pesquisa e o projeto havia se tornado viável. Re-organizei toda minha vida profissional sobre a centralidade dessa atividade e obviamente dessa fonte de renda. Mas após três meses de indecisões e adiamentos por parte da instituição executora, comecei a estranhar o comportamento e pressionei por uma decisão definitiva. O diretor foi rápido e me respondeu em poucas horas: minha consultoria estava dispensada.
O dinheiro com o qual eu contava como certo pelos próximos dois anos não existiria mais. Eram 20h. Pouco a se fazer de imediato. Mas tudo a se fazer nos dias seguintes. Eu precisava de uma noite de sono para estar perfeitamente alerta e firme pela manhã.
Às 2:30h, sem sono, resolvi sentar no computador e desengavetar vários projetos que tinham se tornado secundários durante a finalização das negociações do projeto central do órgão inter-governamental, que era sobre demandas de informação técnico e científica na área da saúde. Desengavetei, fiz contatos, escrevi, escrevi, escrevi… até que amanheceu.
De manhã, eu tinha um compromisso assumido há tempos com um amigo da USP: dar uma aula sobre epistemologia da Educação Física para seus alunos. Duas aulas, para duas turmas. Nelas, falei muito sobre a importância da informação científica na construção da identidade profissional. Mais do que nunca, estava convencida sobre a importância do projeto que eu criei e que nunca seria executado.
Cheguei em casa e encontrei muitos resultados dos contatos feitos de madrugada. Fiquei satisfeita ao perceber que consegui colocar vários bondes em movimento – qual deles levaria a um destino produtivo, não há como saber. Falei com meu sócio e a essa altura temos uma semana cheia de compromissos e reuniões.
Cansada, fui treinar – nem que seja realmente o fim do mundo, meu treino é intocável. E quando voltei para casa estava cansada, porém contente.
Do mesmo jeito que a chuva perturbou meu confortável hábito de dormir sempre na mesma posição, a rasteira que tomei da instituição para a qual prestava consultoria perturbou a confortável expectativa de uma relação profissional contínua e provedora.
Me mexi e consegui abrir novas perspectivas.
No treinamento de força intenso, é preciso adotar estratégias para romper o que todo atleta teme, mas enfrenta: a estagnação. Tem uma hora que ele percebe que por mais que treine, suas cargas não aumentam e sua performance estaciona. Antes que isso aconteça, “perturbamos” a homeostase com modificações no tipo de treino, nos exercícios, na intensidade e na frequência. Todo atleta sabe que para CRESCER, é preciso romper a homeostase, quebrar a rotina, desfazer o conforto, inovar.
Mais uma vez, o que vale para o treino e para o esporte, vale para a vida de modo geral.
Acho que o diretor da instituição inter-governamental me fez um favor, quebrando a minha homeostase. Por causa dele, acho que entrei num novo ciclo de crescimento, vamos ver no que dá…

Marilia


BodyStuff

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