Ano Internacional do Esporte e da Educação Física I: a EF na escola

A UNESCO declarou o ano de 2005 o Ano Internacional do Esporte e da Educação Física (http://portal.unesco.org/education/en/ev.php-URL_ID=38192&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html) e a semana passada comemoramos o dia do Educador Físico no dia 2 de setembro. Liguei para alguns amigos meus que são educadores físicos para desejar felicidades neste dia. Quase todos eles são personal trainers e se especializaram em treinamento de força, avaliação física, natação, dança e outros. Me dei conta de que não telefonei para um único professor de educação física escolar. Pior: me dei conta de que não conheço o professor de educação física da minha filha.
Fiquei pensando em que educação é essa que a sociedade espera e recebe do educador físico e cheguei à seguinte conclusão: nenhuma. O lugar da educação física no ensino básico e superior foi definido de diferentes maneiras ao longo do tempo. No entanto, para que um campo do conhecimento encontre uma correspondência na formação educacional básica, é preciso que este campo – seja ele científico, um campo profissional ou ambos – tenha conquistado um espaço social. Que sua legitimidade seja publicamente reconhecida. Isso não ocorre com a Educação Física.
Não passaria pela cabeça de ninguém perguntar: “que física é a física que ensinam a meus filhos nas aulas de física?” ou “que biologia é a biologia que ensinam a eles nas aulas de biologia?”. Certamente, o conteúdo mais consensual, bem estabelecido e avalisado pela comunidade científica correspondente. Além disso, dependendo da qualidade do projeto pedagógico, os objetivos e estratégias curriculares são claros e espera-se que ao final do terceiro ano colegial nossos filhos saibam o que é física e o que é biologia.
Nada disso se dá com a educação física. Não é o conteúdo do campo do conhecimento constituido pela Educação Física que é, no formato apropriado para cada nível de formação, oferecido aos estudantes. Em algumas pesquisas, quando perguntados sobre o que é educação física, alunos de escolas públicas brasileiras só conseguem pensar em jogos e recreação.
Os intelectuais e a elite simbólica de maneira geral têm posturas ambivalentes em relação a essa questão. Existe um setor, profissionalmente ligado à educação física ou à pedagogia, que de fato tem projetos mais ou menos bem formulados. Existe outro setor, cujos interesses na educação variam (garantir a continuidade do capital simbólico dos próprios filhos através do controle sobre a instituição escolar; gerenciar projetos educacionais abrangentes), que simplesmente despreza todo o problema, não se dedica a pensá-lo e cumpre formalidades herdadas de burocracias passadas.
O setor que possui projetos é variado. Existem desde projetos que enfatizam apenas o aprendizado motor até aqueles cujo discurso é fundamentalmente utilitarista, onde a relação da criança com a atividade física está a serviço da transformação das relações de classe. Em todos eles, no entanto, o corpo e o movimento são externos ao indivíduo. Além disso, em nenhum deles corpo ou movimento são apreendidos como objetos do conhecimento científico. Entre os projetos menos politizados existem alguns cujo objetivo é a melhoria de indicadores de saúde e bem-estar. As estratégias, no entanto, abrangem apenas a garantia da frequência das práticas de atividade física e a introdução de hábitos saudáveis – não faz parte delas modificar a relação cognitiva do estudante com seu corpo e com o corpo humano de maneira geral.
O setor que não podia ligar menos é o dos meus pares – profissionais de outras áreas com filhos em idade escolar ou profissionais da área da educação de maneira geral. Observo a grande e louvável preocupação nos projetos educacionais das escolas de nossos filhos (escolas construtivistas, de perspectiva frequentemente experimental e muito caras) com a integração do conhecimento. Tanto a integração inter-disciplinar como a integração do conteúdo com a prática. Assim, existem projetos combinados de biologia e história, ou de química e geografia, ou de matemática e filosofia. Excursões e vivências onde os conhecimentos são mobilizados em atividades interativas. Mas em relação à educação física, nada além de campeonatos.
Concluí que entre a perspectiva extremamente ideologizada (e desprezada por outras áreas do conhecimento) dos “portadores de projetos” e a negligência completa dos educadores mainstream, não existe lugar para o corpo como objeto de conhecimento e apropriação.
Nossa formação, como intelectuais, passa por uma separação cognitiva, ideológica e, por fim, quase física entre corpo e mente. Não só não damos importância ao corpo, como não consideramos correto pensá-lo de forma integrada. Somos, assim, alienados de nossos corpos e, portanto, de uma parte significativa de nossa identidade.
Na minha opinião, fazendo isso (e sendo coniventes com um ensino absolutamente precário de educação física nas escolas), estamos sendo irresponsáveis. É para nós que a sociedade se remete quando necessita de idéias e modelos com os quais pensar a realidade e, também, para rejeitá-los. Vivemos um momento em que as doenças não-transmissíveis, cujas causas são fundamentalmente associadas ao sedentarismo e aos péssimos hábitos alimentares, são as principais causas de morte e invalidez no mundo. Vivemos a era da alienação do corpo e somos parte do problema.
Neutralidade em relação às relações de poder no mapa político das profissões, indiferença em relação à marginalidade da educação física como campo do conhecimento, desinteresse pelo papel da educação física na educação básica são, hoje, ao meu ver, posturas não apenas erradas, mas perigosas. É nossa obrigação contribuir para construir uma nova forma de pensar o papel da educação física como profissão, área do conhecimento e disciplina do currículo básico, ainda que não sejamos educadores físicos (mas somos cidadãos e, às vezes, pais).
Uma abordagem que subvertesse os modelos que mencionei traria os conteúdos científicos das ciências do movimento e do esporte para a sala de aula de educação física. Educação física seria a disciplina de eleição para o ensino de anatomia humana – em cooperação com a disciplina biologia, mas jamais prescindindo do aspecto integrativo desse conhecimento que só uma ciência do movimento pode proporcionar. Desde que já introduzidos os conceitos relativos aos grupos de moléculas que constituem os alimentos, nutrição humana propriamente dita deveria ser atribuição da disciplina educação física. Para os níveis mais básicos (primeiro grau), provavelmente seria adequado restringir noções de nutrição às aulas de educação física.
Assim, educação física passaria a ser uma disciplina escolar de fato e de direito, com conteúdo codificado e sancionado por uma comunidade de especialistas e seus professores teriam a mesma autoridade e legitimidade que os demais professores da escola. Uma transformação nesse nível básico pode ou não repercutir, com prazos imprevisíveis, em outras dimensões, como na negociação de um papel social mais reconhecido para a educação física na sociedade de maneira geral.
A saúde pública e a formação humana integral das futuras gerações só têm a ganhar com isso.

Marilia


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