O caso “Panico, panicats versus Strongman” : considerações (quase) finais

Hoje é o “the day after”: o dia seguinte à publicação, pelo UOL, através de mais uma excelente matéria de Bruno Freitas, do posicionamento da comunidade esportiva quanto à apropriação, pelo programa “Panico na TV”, do esporte STRONGMAN para criação de um episódio humorístico.

O episódio aconteceu, foi consumido, a comunidade observou, se posicionou, se manifestou, a imprensa responsável cobriu e houve reações. É hora de interpretar isso tudo, aprender lições e continuar a marcha. A marcha de cada um: no nosso caso, a construção do esporte. No caso da imprensa responsável, cumprir sua missão. No caso da Band, escolher algum outro tema besta com o qual criar essa linha de humor que, diga-se de passagem, tem alto consumo.

O caso acaba aqui – as lições e os resultados, não.

Vamos aos fatos: a semana passada, o programa Panico na TV realizou um episódio da “Academia das Panicats” onde elas realizavam atividades que faziam referência direta ao esporte Strongman. Houve repercussões na imprensa.

Panicats tentam empurrar caminhão e levantar pneus em provas de “homem mais forte do mundo”

 

A comunidade de atletas e dirigentes do esporte não gostou: todos se sentiram profundamente incomodados e se manifestaram publicamente. O órgão da imprensa que cumpriu seu papel e cobriu o conflito de interesses foi o UOL, com a seguinte matéria, publicada ontem, dia 23 de maio:

Quadro do Pânico revolta a comunidade do Strongman: “Estão enfiando a gente no esgoto”

Para entender uma situação onde muita coisa não é explicitada, nada melhor do que o método da dissecção: vamos separar as partes.

  1. A imprensa

A imprensa é uma instituição social que investiga, documenta e relata fatos de interesse amplo. Mas o que é “interesse amplo”? Supostamente, a imprensa é isenta e não julga. O “fato” deve mostrar-se relevante para que a imprensa cumpra seus procedimentos. O problema é que fato não fala. Quem fala são os atores do fato. Assim, estabelece-se uma relação complexa em que os atores assediam a imprensa tentando persuadi-la quanto à relevância de seus fatos. Relevância também não é algo tão fácil de definir: relevante para quem? As eleições presidenciais são relevantes para todos os habitantes do país. Mas a descoberta de um novo pulsar pode não parecer importante para quase ninguém, exceto meia dúzia de astrofísicos. No entanto, é relevante e cabe ao jornalista “traduzir” esta relevância, de outra forma totalmente esotérica, para o público amplo. Todo fato, portanto, precisa ser interpretado à luz de muitas variáveis para que se entenda sua relevância.

O papel da imprensa, então, não é tão direto. Não basta esperar que a realidade “fale”. Numa sociedade plural, os setores sociais estão o tempo todo negociando “relevância”. Para um imenso contingente, duas páginas de texto para o novo pulsar é uma ofensa quando o Corinthians está em negociação sobre um novo jogador. Um número muito maior de pessoas tem interesse na contratação do futebolista. Isso faz do fato mais relevante do que o pulsar? Não. Mas dificulta o papel da imprensa.

A imprensa necessita de fontes primárias. Algo ou alguém que forneça a informação da forma mais bruta possível (menos “interpretada”). Depois de colhidos os fatos, trata-se de mapear as interações em torno dele, entrevistas os diversos atores envolvidos.

O Strongman (bem como outros esportes de força) é um esporte apreciado por um pequeno número de pessoas. Num mundo plural, quase tudo é apreciado por “um pequeno número de pessoas”, pelo simples fato de que a população é imensa e variada. Ele tem interesse intrínseco (é uma construção cultural), tem relevância para a área da saúde (seus movimentos são repertório para treinamento de todo tipo de gente) e tem importância como entretenimento. Assim, a imprensa passou a dar atenção ao embrião deste esporte no Brasil.

O papel dos jornalistas que cobriram os acontecimentos neste esporte foi não apenas investigar e documentar o que aconteceu, mas explicar (traduzir) para o público amplo os fatos e o contexto. Resumidamente, o que é o esporte e porque é interessante o conteúdo da notícia.

A cada publicação de boa qualidade jornalística, onde a imprensa interagiu com as fontes, seguiu-se uma pequena onda de sensacionalismo televisivo. Como interpretar este fato?

 

  1. A indústria do entretenimento

A indústria do entretenimento, com íntimas e promíscuas relações com a imprensa televisiva, é sensível a tudo que tem audiência. Se o UOL publicar uma matéria que tenha repercussão e tenha potencial de entreter (seja bizarro, chocante, bonito ou simplesmente muito estranho), as emissoras, que monitoram com muita precisão estes indicadores, reagem instantaneamente.

Tanto a imprensa quanto a indústria do entretenimento produzem INFORMAÇÃO PERECÍVEL. Ou seja: algo que tem interesse aqui e agora. Assim que consumido, não existe mais.

Tanto uma como a outra, no entanto, ao produzir informação perecível para si, podem produzir ou reforçar um MODELO DE SITUAÇÃO. Quem leu ou assistiu incorporou a existência de algo que não conhecia, e isso não perece. Quem leu ou assistiu reforçou valores, e isso perece menos ainda.

Ao contrário da imprensa séria, a indústria do entretenimento, que poderia ser séria e muitas vezes até é, não faz uma TRADUÇÃO de um acontecimento interno a um segmento para a sociedade mais ampla. Como seu objetivo é obter lucro através do entretenimento de massas, ela se apropria de “pedaços do fato” (que podem ser apenas sua forma, seus símbolos, seus personagens) e produz espetáculo.

Posso citar aqui inúmeros casos de espetáculos que certamente geram lucro para suas emissoras e ao mesmo tempo preservam o conteúdo do fato que utilizaram para criá-los. “So you think you can dance” é um destes shows.

O que a midia televisiva fez com o Strongman no Brasil, na década de 1990 e começou a fazer novamente agora, foi o oposto: ela se apropriou da “casca da coisa” (o formato do esporte, seu aspecto bizarro, a natureza exótica dos objetos pesados manipulados, o tamanho dos atletas, os gestos desconhecidos) e criou espetáculos.

Houve exceções, claro. Elas foram os jornais esportivos televisivos. Boa parte deles fez coberturas muito boas do Strongman, em todos os estados.

A indústria de entretenimento, no entanto, vem exibindo sua tendência a perverter o substrato do qual se apropria para produzir espetáculo. Mesmo quando mostrou atletas, já começou a censurar os aspectos substantivos de sua identidade, forçar a manifestação de valores estranhos a eles (“exagero de força”, “excesso de muscularidade”, coisa que, de fato, nem existem) e fazer humor através do ridículo.

O caso das Panicats foi a gota d’água e por isso reagimos. Modelos que são dirigidas para fazer referência subliminar (ou nem tanto) permanente com a prostituição, cenas que dialogam abertamente com a pornografia, foram colocadas em cena com os equipamentos, os movimentos e o NOME do esporte Strongman. Tanto que nos dias seguintes era essa a repercussão na imprensa: panicats ao lado de Brian Shaw (campeão de dois circuitos internacionais de Strongman).

É inegável que houve uma gigantesca disseminação de uma determinada imagem do Strongman através do programa.

Qual o efeito dessa repercussão? Para quem? A quem beneficia?

 

  1. O esporte, seus atores e seus interesses

Há quem argumente, ingenuamente, que qualquer repercussão interessa. O que é “interessar”? Vejamos: ela promove o esporte? Atrai atenção pública de maneira que esta passe a apoiar o próprio esporte e seus atletas? Transforma o tempo de exposição do esporte, dos atletas, dos símbolos em Return Over Investment (ROI, retorno sobre investimento), que é o indicador que empresas sérias usam para negociar patrocínio? Atrai patrocínio para os eventos ou atletas? Traz contratos bons aos atletas, seja lá no que for?

A resposta, senhores, é NÃO.

Até hoje, demos parte substancial do nosso tempo para fornecer informação à imprensa e à mídia. Fornecer informação à imprensa é nossa obrigação, como é obrigação dos cientistas, artistas e demais segmentos que se constituem em fontes de fatos esotéricos (que têm linguagens muito internas às comunidades de praticantes). Nós fazemos isso.

Fornecer substrato à indústria de entretenimento, cujos espetáculos NUNCA geraram um centavo de retorno para nós, que jamais persuadiram uma indústria a nos patrocinar ou sequer abriram espaço para nós, não é nossa obrigação.

Surpreendente? Suponho que sim. Todos pensam que a exposição na mídia televisiva é o objetivo supremo de qualquer um. Quem criou essa expectativa foram as emissoras, pois assim elas têm substrato gratuito permanente. Foi a própria mídia televisiva que criou o sonho dos “15 minutos de fama”. Se perguntarmos às pessoas o que elas ganham com 15 minutos (ou um minuto!) de exposição televisiva, elas não sabem responder.

Mas nós sabemos: nas atuais condições, NADA. Só temos a perder. Perdemos anos de trabalho duro de divulgação responsável com um programa que perverte nosso esporte.

Foi exatamente assim que o primeiro embrião do Strongman morreu nos final dos anos 1990.

A nossa reação já estava no gatilho. O programa do Panico, como eu disse, foi a gota d’água.

Nosso recado é claro: as organizações desportivas não vão mais colaborar com espetáculos depreciativos (que NÓS julguemos depreciativos) do esporte. Não precisamos, não temos obrigação e não ganhamos nada nos submetendo às imposições autoritárias das emissoras.

Finalmente, olhemos do ponto de vista dos patrocinadores: uma indústria de suplemento deve preferir associar seu whey a uma moça que jamais se expressa (a comunicação para símbolos pornográficos é vetada), que não exibe performance esportiva, que transita num limite perigoso entre o erótico e o pornográfico ou a uma atleta que consiga explicar o motivo pelo qual consome suplementos protéicos?

Eu tenho patrocínios. Num determinado momento, fiz as contas e percebi que eu era talvez a atleta de força mais patrocinada do país. Por que isso? Será que é porque o que eu recomendo é consumido em função da autoridade que conquistei associando minha performance esportiva ao conteúdo da minha comunicação pública? Ou foi porque eu apareci fazendo palhaçada em algum palco televisivo? Pense bem (pouquinho).

 

  1. Os valores

Finalmente, valores são relevantes. Supondo que nada disso que eu demonstrei no item anterior fosse verdade, supondo que a exposição televisiva de fato produzisse enorme retorno em patrocínio e apoio ao esporte, será que seria aceitável produzir espetáculos que trouxessem valores que conflitam com nossas mais sagradas convicções?

A indústria da pornografia é machista. Concedo que existe uma variedade quase infinita de perversões com outros conteúdos, mas a conhecida “putaria” é machista. Ela vai continuar existindo e não é nosso problema. Mas é nosso problema se a indústria de entretenimento quiser produzir espetáculo se apropriando de nosso esporte em referência à putaria. Temos todo o direito de protestar. Qual o problema de protestarmos? Não estamos censurando. Estamos atrapalhando? Pode ser. Eles nos atrapalharam também. Vivemos numa sociedade plural: eles têm um interesse, nós temos outro.

E se nos propuserem propaganda de produtos tóxicos? Faremos? E se propuserem propaganda de produtos perniciosos ao ambiente, faremos?

Pensem.

Não se pode perder o foco e a lógica dos objetivos. Caso contrário, uma hora saímos da já perigosa máxima “os meios justificam os fins” para o desvio de “os meios justificam-se a si mesmos”.

 

 

MARILIACOUTINHO.COM – idéias sobre treinamento de força, powerlifting, levantamento de peso, strongman, esportes de força, gênero e educação física. Ideas on strength training, powerlifting, weightlifting, strongman, strength sports, gender and physical education.

A vida é pentavalente: arranco, arremesso, agachamento, supino e levantamento terra. Life is a five valence unit: the snatch, the clean and jerk, the squat, the bench press and the deadlift.

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