Primum non nocere – “first, do no harm”

Essa é minha homenagem de final de ano àquele que esteve incondicionalmente do meu lado nos momentos mais dramáticos, que foram lesões sérias ou projetos sérios: Fabiano Rebouças, médico ortopedista do Hospital do Servidor Público e da Clínica Berrini. Meu médico e médico de atletas carentes de Paraisópolis.

O princípio de “antes de mais nada, não fazer nada que prejudique” (“first do no harm”), o Primum non nocere, não é parte do juramento de Hipócrates, como se acredita. Há tanto tempo é ensinado aos estudantes de medicina como tal que sua origem anônima surpreende. O juramento de Hipocrates contém algo semelhante: “juro protegê-los (àqueles sob meus cuidados) de danos ou injustiças”. É um juramento sério, com elementos de valor atemporal. Muito dele é negligenciado na atualidade, como a humildade, presente em pelo menos três dos itens do juramento: primeiro, o de prescrever apenas o que esteja dentro de seu conhecimento. Segundo, de evitar aplicar tratamentos fora de sua capacitação (no caso, de outras especialidades). Terceiro, de honrar o ensinamento de quem veio antes.

Mas o primum non nocere contém algo mais: ele sintetiza um conflito básico da profissão médica. Muitas vezes, o médico é obrigado a se confrontar com uma situação onde a relação entre os custos (danos) e os benefícios é muito equilibrada. Como decidir? Primeiro, não faça mal… Ou seja: primeiro, tudo tem que ser ponderado no contexto de sua aplicação, e esse contexto é o doente e não a doença.

Raros são os profissionais que conseguem ter a sabedoria para compreender esse princípio. Não adianta que leiam formalmente um juramento antes de receber seu credenciamento oficial para a prática médica. É preciso um “algo mais”, que talvez esteja no imponderável elemento da vocação.

Antes do Fabiano, conheci alguns com essa vocação, que partilha algo com a dos sacerdotes ou “care-takers” espirituais. Todos nascidos no início do século. Com dois convivi bastante – foram meus tios adotados Silvio Carvalhal, cardiologista especializado em Doença de Chagas, e José Vicente Martins Campos, gastro-enterologista ativista na área de desordens psico-somáticas. Talvez na geração deles, onde se valorizava o trabalho voluntário nas Santas Casas, isso fosse menos incomum. Hoje é difícil.

Fabiano deve ter nascido assim.

Não digo isso apenas pela forma como sempre me tratou. Eu sou uma paciente difícil, eu confronto especialistas, admito que sou dura e agressiva e é difícil quebrar essa minha casca dura, especialmente se por dentro me sinto vulnerável e amedrontada. Procurei o Fabiano sempre em momentos de total vulnerabilidade, quando tive lesões e controlei o medo de que prejudicassem o que organiza minha existência: meu treino. Eu re-construí uma identidade esfacelada por uma doença grave a partir de meu corpo, e a cada ameaça a ele eu confesso que tive medo. Mas tive o Fabiano do meu lado.

Primeiro, sorrindo e neutralizando o medo: “tudo tem jeito”. Foi isso que sempre ouvi dele. Naquela salinha, com som new age baixinho ao fundo e semi-escuridão, enquanto as agulhas faziam seu efeito benéfico em minhas lesões, meu medo se dissolvia e se transformava em otimismo, em energia curativa e em vontade de vencer.

Depois aprendi que “tudo tem jeito” só para alguém com a sabedoria dele. Na verdade, numa concepção mais endurecida e superficial, não tem: boa parte das minhas lesões teria sido tratada por outros médicos com cirurgia e com a proibição das práticas que constituem meu treinamento e competições.

Fabiano ri e diz: “atletas são os melhores e piores pacientes. Melhores porque fazem exatamente o que você manda porque querem muito ficar bem. Além disso, não reclamam de dor, suportam qualquer desconforto e são disciplinados. São os piores também porque mandar que parem de treinar e competir e nada é a mesma coisa: não vão parar. Então, para que perder tempo?”

Então ele se vira e acha um jeito – como ele diz, “tudo tem jeito”.

Fabiano também trata minha mãe, uma senhora com sérios comprometimentos articulares, de 82 anos de idade. Minha mãe não é atleta, nem jovem, nem agressiva – nada podia ser mais diferente do que eu e minha mãe. No entanto, Fabiano tem o jeito certo de administrar as dores e lesões dela também. Por que? Porque Primum non nocere significa, antes de mais nada, que acima da lesão, acima da doença, há um indivíduo integrado, com um corpo cheio de história, um corpo com memória, um corpo com alma. Esse corpo é um universo único, e sem conhecer ou saber sentir seus impulsos, intenções e movimentos, não é possível obedecer o princípio básico de não machucar. Pois só se pode evitar aumentar o dano a um ser que se apresenta frágil e com seu equilíbrio vital rompido ao compreendê-lo como um todo.

Só alguém que vê seres humanos dessa forma é capaz de se dispor a cuidar de gente tão mais frágil, cronicamente frágil e vulnerável, como atletas moradores de uma favela, gratuitamente, como Fabiano faz.

Eu achava que a era dos médicos missionários havia terminado com os sanitaristas da estirpe de Emanuel Dias e Evandro Chagas. Mas existe um, e se existe um, há motivo de esperança.

Esperança é sempre uma coisa boa para se ter nos rituais de passagem, como o final do ano. Que 2008 abra as portas para uma nova geração de médicos missionários, não desses com discursinhos prontos, mas desses que enxergam a alma dos seres aflitos. Mais Fabianos.

 

Marilia

 

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