Academia não é entretenimento

Sou vizinha da academia que frequento e trabalho em casa, de modo que posso me dar ao luxo de frequentá-la duas vezes por dia, por períodos curtos de uma hora. Faço meu treinamento com pesos de manhã e, de noite, às vezes faço uma aula de bike, às vezes corro pelo bairro e quando chove posso correr na esteira, o que acho um saco pois me sinto um hamster.
Ultimamente tenho curtido muito a aula de bike do Bruno, e vou umas três ou quatro vezes por semana, à noite, para lá.
Por causa do número de interessados, tento chegar uma meia-hora antes para reservar meu lugar. Aproveito para cumprimentar amigos.
Nessa academia, alguns dos meus bons e melhores amigos são professores – tanto da musculação, quanto da ginástica. Os alunos são rotativos, mas claro que o grupo mais assíduo se conhece.
Pois bem, ontem fui à aula do Bruno das 20:30h e, na meia-hora anterior à aula, fui parada por um amigo que conversava com uma aluna que não conheço. Ele comentava que se lesionou por má orientação na execução de um exercício. Eu escutei, quieta. Isso foi o suficiente para que ela disparasse um discurso que já ouvi antes, mas que há tempos ninguém tem tido coragem de expressar na minha frente, por saber das minhas relações pessoais com os professores. Mas essa não me conhecia…
O discurso:
1. ela “até gosta” de musculação, mas não faz mais porque os professores daquela academia são “péssimos” e, assim, ela não tem a orientação adequada;
2. os professores da ginástica são péssimos também, porque não a “animam” nas aulas.
Passou-se um diálogo mais ou menos assim entre ela e eu:
(eu): eu discordo de você, acho que essa academia tem a sorte de ter profissionais de muito boa qualidade, muito melhores do que a média e olhe que eu conheço bem o mercado. Em que sentido são péssimos?
(ela): ah, eles não orientam
(eu): como, não orientam?
(ela): não vêm corrigir você, eu vejo, aí, na sala, não corrigem ninguém
(eu): mas o treino é seu ou é do professor? Porque se é seu, você tem que assumir responsabilidade sobre o treino. O treino é um programa montado individualmente, personalizado, para o seu corpo. O corpo é seu, o treino é seu, o interesse em que seja bem feito é seu. É você que precisa, no início de cada programa novo, que dura cerca de 8 semanas, chamar um professor para observar você na execução das primeiras (só das primeiras) repetições de cada série e assim garantir a qualidade técnica do seu treino.
(ela): mas eles não têm interesse…
(eu): você já contou o número de professores em sala? O número de alunos? Eu estou vendo 3 professores e cerca de 200 alunos. A maioria tem treinos de 8 a 12 exercícios, de 3 a 4 séries cada um, de 6 a 15 repetições por série. Você honestamente acredita que é possível monitorar a execução de exercícios nessas condições? É matemática simples… E depois, há problemas deles, internos, relativos a carga horária deles e de como funciona a dinâmica da sala de aula. Coisas que não dizem respeito a você. De novo: o treino é seu, é sua responsabilidade executá-lo corretamente, o interesse é só seu.
(ela): mas eu não sou como… (ela queria dizer, “como você, uma marombeira nojenta”, acho…) eu venho à academia mais pela…
(eu): saúde?…
(ela): não, mais por relaxar, entende? Eu não tenho interesse em ter tantos centímetros de braço, tantos de perna, eu trabalho o dia inteiro…
(eu): eu também trabalho, mais do que você imagina
(ela): mas eu não tenho interesse em… como correr, aqui, não tenho estímulo. Eu prefiro as aulas. Você nunca vem às aulas, não é?
(eu): já fiz várias aulas, conheço, sim.
(ela): então, elas são ruins… já foram boas. Os bons professores foram embora, agora não tem animação, não tem estímulo…
(eu): mais uma vez: você coloca toda a responsabilidade sobre o “outro”. É culpa e responsabilidade do professor, sempre. Você se aliena completamente do seu próprio corpo, quer um animador, um show-man para entreter você. Academia não é entretenimento, academia é condicionamento físico, saúde e também esporte. Até é lazer, desde que no contexto da vida de quem encare isso tudo como lazer. Para mim, meu esporte é tudo, inclusive lazer. E depois, deixar de fazer musculação para fazer aula porque é “animado”…
(ela): não, mas eu até gosto de musculação, tanto que faço as aulas de body…
(eu): aí sim, aí eu acho que é péssimo. Esses body-coisas são um crime, isso sim é um atentado contra o corpo do aluno e é culpa da empresa mais lucrativa, do maior monstro da indústria do fitness mundial.
(ela): como assim, eu discordo…
(eu): individualidade biológica. Quem disse que você tem aprendizado motor para fazer agachamento? Rosca direta? Aí eu ponho quarenta pessoas numa sala, ponho uma musiquinha, uns pesos padronizados e taco todo mundo para fazer agachamento. Dane-se se a dona Maricota tem 55 anos e é sedentária com escoliose e o Marquinho tem 22 e está com peso abaixo do recomendado. Isso não tem nada a ver com objetivos de condicionamento nem com nada do conhecimento que se tem sobre treinamento de força. Isso é o mercado, livre, solto e desimpedido. Um dos setores mais dinâmicos do capitalismo mundial, o mercado do fitness. Vem essa empresa neo-zelandeza e – bum – descobre a pólvora: patenteia sistemas pradronizados de aulas que permitem socar até centenas de pessoas num mesmo ambiente para praticar o que? O que é bom para elas? Porra nenhuma! O que é bom para a conta bancária da multi-nacional! Isso é bacana? Isso é divertido? Eles também acham!
Sei que eu falei pra caralho. A moça foi ficando cada vez mais quieta. Acho que nunca mais vai falar comigo. Ingenuidade dela, podia ser pior. Quando acabou a aula, encontrei minha grande amiga Viviane, que costuma fazer as mesmas aulas, e é esposa de um dos professores… Está certo que a Viviane é mais nobre e contida que eu, mas a moça teria cometido uma super-mega-gafe falando mal do marido dela nos termos em que falou.
A mim, deu apenas oportunidade para soltar cruelmente meu discurso contra a alienação corporal e, de uma certa forma, aliviar meu ressentimento contra essas pessoas sem compromisso consigo mesmas e com os outros, sem senso crítico, sem compaixão, que frequentam a academia por futilidade e tratam os profissionais que a atendem com desrespeito e falta de educação.

Marilia


BodyStuff

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