No pain, no gain e as lesões

Estou de molho há dois dias, tomando anti-inflamatório, relaxante muscular e analgésico, com uma contratura na lombar. A história dessa contratura não representa exatamente uma novidade para mim: quarta-feira, fiz um treino bastante pesado de levantamento Terra e exercícios auxiliares para costas. A dor tardia estava no auge na sexta-feira, quando resolvi fazer meu treino de corrida à tarde. Senti a dor na lombar logo nos primeiros minutos de corrida e tive a seguinte decisão pela frente: aceitar a dor e parar ou ignorar a dor e correr como planejado. Muitas vezes, quando começo a correr, existe alguma dorzinha de menor importância que se manifesta. Eu a ignoro, continuo a correr, a dor desaparece e fica tudo bem. A maior parte das dores se comporta assim – são as chamadas “dores bem comportadas”. Esta última pertence à categoria das “dores rebeldes”: não só não sumiu, como piorou. Não só piorou como se tornou insuportável.
Há três meses, tive uma dessas, bem menos insuportável, na região abdominal. Mesma história: após um treino muito forte de agachamento, pequeno desconforto de dor tardia, corrida, opção por ignorar a dor crescente e aí… Ela se instala. Pela região em que estava, fui parar no Pronto-socorro de um bom hospital de São Paulo, onde, após muita palpação e ultra-som, foi verificado que se tratava de uma contratura.
Essas coisas são muito individuais, assim como quase tudo nas respostas das pessoas aos estímulos, stress, etc. Existe claramente um padrão em mim, que é fazer essas contraturas na musculatura estabilizadora em corrida.
Mas essa situação alimenta pelo menos duas questões centrais do “ethos esportivo” e da psicologia do esporte. A primeira diz respeito ao maior de todos os princípios normativos que rege a vida dos atletas: NO PAIN, NO GAIN. A segunda é a resposta do atleta diante de uma lesão instalada que se torna realmente desabilitante, interrompendo programas de treinamento ou até pior: ocasionando o fim das chances de vitória em campeonatos.
As duas questões estão relacionadas.
Como atletas, aprendemos a ter resistência à dor. Muita coisa machuca em qualquer esporte. Bolhas se formam, objetos causam pequenas contusões e tudo isso precisa ser olimpicamente ignorado. Nenhum atleta que se preze deixa de treinar porque suas bolhas estão incomodando; porque sua unha caiu; porque está com hematomas pelo corpo. Os esportes de força e o fisiculturismo fazem com que o atleta não apenas se habitue com a dor, mas utilize-a como critério de avaliação para a intensidade do estímulo: trata-se da dor tardia. A dor tardia (“delayed onset muscle soreness”) está relacionada à extensão do dano às fibras musculares como conseqüência do estímulo do treino. É o dano “do bem”, pequenas rupturas que levam a adaptações subseqüentes sob a forma de aumento da força e tamanho do músculo. É diferente da dor aguda causada por lesão e acredita-se que é mais intensamente provocada pelos movimentos excêntricos do que concêntricos. Quanto mais corretamente se executa o exercício de força quanto à forma (técnica), quando mais atenção se dá à fase “negativa” (ação excêntrica), maior será a dor tardia.
Aos poucos, vamos aprendendo a diferenciar os tipos de dor e quanta atenção elas merecem. Certas diferenças são muito óbvias: uma distensão, por exemplo, causa uma dor bem forte e aguda, como resultado instantâneo do estímulo. Ela é resultado de rupturas extensas nas fibras, que não levam a nenhuma adaptação e sim requerem uma cicatrização que deixa o músculo permanentemente alterado.
Contraturas são um terceiro tipo de lesão, que também não é do bem, e é uma resposta a um stress excessivo sobre a fibra. Trata-se de um espasmo muscular, uma contração involuntária que pode ocorrer como resposta a um stress repetitivo. Não estão relacionadas a uma ruptura de grande extensão, como a distensão.
Já tive de todos os tipos e todos os tamanhos. Mas até hoje, com décadas de atividade esportiva nas costas, ainda sou vítima de mal julgamento, como no caso da atual contratura.
Por que?
No pain, no gain! O princípio é suportar a dor e a sabedoria, ou sacação, ou intuição é saber quando uma dor precisa ser respeitada e considerada um limitante ao treinamento para que não se instale uma lesão pior.
Quando a lesão pior acontece, não há muito mais o que fazer exceto dedicar-se o melhor possível ao tratamento para recuperação. As respostas emocionais dos atletas às lesões são dramáticas e, por experiência, observação e algumas indicações da literatura internacional, parecem estar relacionadas com maturidade (idade e tempo de experiência com o esporte).
A lesão é um inimigo maior, é algo que tira do atleta aquilo que ele mais se dedica a conquistar: controle e domínio sobre seu corpo. De repente, algo mais forte se instala na vida dele e o submete a limites que ele havia superado. Restrição a movimentos, velocidades, amplitudes… Restrição ao treino e, em casos mais azarados, perda da chance de vitória em competições.
Respostas comuns são a negação (“denial”), o que em geral faz com que o quadro se agrave. É tão insuportável ao atleta enfrentar a realidade de que ele está lesionado, não vai competir ou não pode treinar que ele ignora a lesão. Outras respostas comuns são a raiva, a ansiedade e, finalmente, a depressão.
Lembro-me da minha primeira lesão grave. Foi uma estranha lesão no músculo da mão direita, quando eu me preparava para o campeonato brasileiro de esgrima. Já contei essa história em vários lugares, mas não como me senti. Eu era a favorita para ganhar o título e estava num ritmo muito intenso de treinamento. Meu treinador, Mestre Ângelo Pio Buonafina, se dedicava muito à minha preparação. Não existiam finais de semana nem feriados – treinava todos os dias, muitas horas. Quando o primeiro ortopedista examinou minha mão, disse que poderia se tratar de um tumor e que eu deveria parar de treinar. O campeonato estava perdido. Chorei desesperadamente. Aquele diagnóstico mudou meu mundo e minha identidade. Quem era eu, afinal? O chão sumiu debaixo dos meus pés. Meu treinador passou a me treinar como canhota, para me confortar, no mínimo para restaurar em mim a identidade de atleta. Mas todos nós sabíamos que não se transforma uma atleta dextra numa campeã canhota.
Eventualmente, achamos uma solução que me possibilitou retomar o treinamento, ganhar o campeonato, e continuar sendo quem eu achava que era: uma infiltração de cortisona no músculo, que suprimiu os espasmos mas depois da qual nunca mais pude lutar sem o auxilio de uma correia que prendesse o punho da arma ao meu braço.
Depois disso, tive muitas outras lesões, distensões, contraturas, cirurgias nos joelhos e hoje mais ou menos lido bem com elas todas. Nunca, em hipótese alguma, respeitei os prazos de repouso prescritos por médicos. Atualmente, já abro o jogo e digo que repouso de uma semana é inaceitável e mostro como é a minha realidade. Boa parte dos médicos é simpática a atletas como eu e acaba muito honestamente apontando os limites reais e procurando alternativas para contornar os limites impostos pela lesão.
No fundo, as dores e lesões são os momentos de enfrentamento do atleta com seus limites, aqueles que sua identidade faz com que encare como desafios a superar, sempre.
No pain, no gain…

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