O dilema do professor de academias – sacerdotes involuntários

SOBRE PESSOAS, INSTITUIÇÕES E PROJETOS PESSOAIS

As idéias de hoje foram provocadas por uma conversa rápida que tive com um amigo, obviamente professor de academia, cuja especialidade prefiro omitir por segurança.
Mas vou começar contando duas historinhas:
Em 1994, quando defendi minha tese de doutorado, mais ou menos tudo ia errado: quase na véspera da entrega do texto na Comissão de Pós-Graduação, o departamento em que eu me graduava na USP resolveu descredenciar meu orientador por uma questão política em relação à UNICAMP, que era a universidade onde ele mantinha o vínculo de fato. Tivemos que caçar às pressas quem assinasse a entrega, depois houve mais problemas bobos, porém estressantes, quanto à composição da banca, perdi arquivos numa troca de sistema operacional no computador (naquela época, tudo era muito mais complicado), o dito cujo quebrou, meu casamento apodrecia mas se recusava a morrer, eu negociava uma vaga de trabalho em outro estado, em condições complicadas, enfim… uma caca indescritível. Durante o processo, quem mais segurou minha onda foi o Marcus, meu professor de ioga, que eu visitava todo dia e me ajudava a alongar e relaxar, uma vez que mais ou menos tudo doía de tensão. Eu precisava ouvir a voz do Marcus comandando meus movimentos e, assim, recuperar o contato com o resto do meu corpo, entrar em comunhão comigo mesma. É mais ou menos assim que eu vejo a atividade física, onde existe uma relação com o sentido mais profundo da “religião”, cuja origem etimológica é “re-ligar”. Para a religião, re-ligar com o divino externo (um deus, um espírito), para mim, re-ligar consigo, se integrar, virar uma coisa só novamente (com corpo e mente unidos).
Outra historinha: durante minha graduação, me tornei amiga de vários professores, namorei alguns, casei com um e de maneira geral posso dizer que aquela universidade favorece essa mistura. Mas uma pessoa era especial: Marilda Sawaya. Ela foi minha professora de fisiologia e foi a pessoa mais sábia e centrada que eu conheci. Eramos muito amigas, almoçavamos juntas e não havia decisão importante na vida que eu tomasse sem antes discutir com ela e ouvir sua opinião. Ela era minha referência. O importante, para mim, era saber que ela sempre estaria lá, naquele laboratório, e que nos piores momentos eu poderia simplesmente ir até o prédio da Zoo e subir até o segundo andar. Foi assim até que ela morreu, em 1996. Apareceu um buraco na minha vida, buraco esse com correspondência espacial. Sentia falta dela, mas, de repente, em vários momentos, eu não tinha para onde ir. Uma ou duas vezes fui pateticamente até a Zoo, subi as escadas e fiquei parada na frente da porta do laboratório, que então já tinha uma plaquinha com outro nome…
Contei essas histórias para dizer que a gente cria certos tipos de vínculo em que a pessoa, o lugar e o contexto institucional estão ligados. Claro que eu podia ligar para o Marcus e conversar com ele. Mas o importante era o contexto da aula de ioga. Claro que podia encontrar a Marilda em qualquer outro lugar, mas a presença dela ali era um marco.
Eu acredito que os frequentadores de academia bem-sucedidos, aqueles que conseguem fazer daquele espaço um em que promovem para si mesmos uma condição de bem-estar, muitas vezes criam essas relações especiais que envolvem pessoas-atividades-contextos. As pessoas em questão são os professores da academia.
Tenho muitos amigos que são professores e tudo que sei sobre isso que descrevo aqui vem do que eles me contam, dos comentários dos alunos e do que eu mesma observo no meu dia-a-dia dentro de uma grande academia de São Paulo.
Uma evidência importante veio também de uma pequena pesquisa que fiz em comunidades virtuais de academias pelo país, onde pude perceber que a fidelidade dos frequentadores das academias não é por esta ou aquela aula, ainda que padronizada, tipo Body Systems. A fidelidade é função da relação com o professor.
Explico: o sujeito curte aula de spinning. Mas se “aquele” professor de spinning começar a dar uma aula do tipo “combat” também, esse aluno tem grandes chances de migrar para essa nova modalidade. A moça gosta da aula de street-dance da Marina. Mas aí a Marina também dá aula de step intermediário. A moça passa a fazer step intermediário e fica até compente na coisa. Mas na hora em que a academia mudar o horário da Marina, a moça vai voltar a fazer só street, com a Marina, porque a relação não era com step nem com street, e sim com a professora.
A academia, com diversos graus de degeneração, reproduz em sala de aula a relação entre mestre e aprendiz, que todo bom praticante de artes marciais conhece. A presença, a voz, e o direito à confiança no mestre são aquilo que o aprendiz busca para recuperar seu centro, e assim caminhar em direção a seja lá o que for.
Muito profundo para se falar dessa coisa fútil que é academia? De jeito nenhum… Não mesmo… As pessoas que, repito, são “frequentadores bem-sucedidos” de academias desenvolvem precisamente essa relação com pessoas-lugar-contexto. Elas vão à academia para recuperar aquilo que, durante o dia, a sociedade lhes rouba.
Vi situações em que alunos ficam absolutamente perplexos, perdidos, sem saber o que fazer, porque “seu” professor foi demitido ou seu horário trocado. Muitas vezes deixam a academia, desanimados.
Será que os administradores de academias sabem disso? Não nesse nível, porque isso iria requerer uma atitude muito profissional de solicitar estudos sobre o perfil psico-social e a dinâmica antropológica em curso, coisa que só os americanos têm a sacação de perceber que gera lucro. Mas num outro, muito utilitário, sabem, sim. E usam essa relação para melhor explorar os professores, que também desenvolvem uma relação mestre-aprendiz com seus alunos, com tudo de responsabilidade e dedicação que isso envolve. Também usam, ainda que de maneira desastrada e mal planejada, essa mesma relação para combater a rotatividade de frequentadores.
Isso tudo que eu escrevi não é muito benévolo em relação às academias, eu sei bem. Mas acho que é real e reflete um dilema sério destes que considero os profissionais da área da saúde menos valorizados no mercado atualmente: trabalham para uma empresa capitalista com objetivos de curto-prazo e em constante transformação, mas lidam com relações complicadas e profundas sob o ponto de vista humano.
São os sacerdotes involuntários de uma igreja que não os quer.

(esse texto é dedicado aos meus amigos professores cujos nomes não posso mencionar, mas que sabem quem são)

Marilia


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