Trivializando o conceito de dependência na base do preconceito

Vivemos a era das “novas adições (ou dependências)”. Inicialmente, o conceito de dependência era aplicado a álcool e outras substâncias psico-ativas. Ao longo do tempo, outras categorias de comportamentos compulsivos foram incorporadas: jogo, sexo, comida e, agora, recentemente, atividade física. Essa última categoria tem sofrido, na última década, um florido desmembramento, gerando as sub-categorias da “dismorfia muscular” e agora, este ano, “dependência de fisiculturismo”.
Eu acredito que esses desdobramentos recentes representam um abuso do conceito de dependência, beirando o ridículo. Para explorar essa hipótese, é importante revisar o próprio conceito.
Goodman (A. Goodman, Addiction: definition and implications, 1: Br J Addict. 1990 Nov;85(11):1403-8.) identificou dificuldades para operacionalizar o conceito de “dependência” ou “adição” na teoria e prática da psiquiatria por falta de consenso em sua definição. Ele propõe a adoção de um conceito segundo o qual dependência é um comportamento que pode funcionar tanto para produzir prazer como para proporcionar uma fuga de descoforto interno, num padrão caracterizado por: 1. fracasso recorrente em controlar o comportamento (impotência); 2. manutenção do comportamento a despeito das consequências negativas (“unmanageability” – descontrole, incapacidade de administrar). No mesmo ano, Miele e colaboradores publicaram um trabalho comentando a maior abrangência do conceito de dependência química no DSM-III-R e ICD-10, manuais de referência diangóstica em psiquiatria. Nesses conceitos mais amplos, a definição não requer mais tolerância e sintomas de abstinência, dando maior ênfase aos aspectos de compulsividade. Dependência e desordens compulsivas e obsessivas se tornaram assim, bastante próximas e difíceis de distinguir.
Para complicar o quadro, existe o conceito de “abuso”. “Abuso” de uma substância é o uso excessivo da mesma ou o uso da mesma para fins outros que aquele para o qual ela é destinada na medicina. Feingold e Rounsaville (Feingold A, Rounsaville B., Construct validity of the abuse-dependence distinction as measured by DSM-IV criteria for different psychoactive substances, Drug Alcohol Depend. 1995 Aug;39(2):99-109.) revisaram o emprego destes conceitos e concluiram que não há bases para uma distinção categórica entre abuso e dependência, estando os mesmos situados ao longo de um contínuum. Wideger e Smith, na mesma linha, apontam que esse é o continuum do descontrole sobre um comportamento (Widiger TA, Smith GT., Substance use disorder: abuse, dependence and dyscontrol., Addiction. 1994 Mar;89(3):267-82).
No entanto, se abuso e dependência se referem a comportamentos de descontrole sobre o uso de uma substância psico-ativa, como aplicar o conceito de dependência a comportamentos que não envolvem o uso delas? Wiesbeck e Taschner (Wiesbeck GA, Taschner KL., [Comments on the definition of so-called “new addictions”], Versicherungsmedizin. 1993 Jun 1;45(3):82-5.) comentaram a questão e apontaram alguns perigos. Para os autores, a aplicação não-crítica do conceito de dependência pode levar a uma “inflação de dependências” (provavelmente o que observamos hoje). Nesse caso, o conceito perde seu poder preditivo e se torna inútil. Alguns anos antes, Jaffe (Jaffe JH Trivializing dependence, Br J Addict. 1990 Nov;85(11):1425-7; discussion 1429-31.) alertou para o perigo da “trivialização da dependência”, atitude intelectual na qual arrancar cabelos compulsivamente e o uso diário de heroína são colocados na mesma categoria, por exemplo. Para o autor, isso levaria a uma erosão do apoio público a políticas de intervenção sobre dependência química, questão séria em saúde pública.
Aparentemente, o cerne da discussão e provavelmente o que deveria ser o critério central para a identificação de uma dependência é o fracasso nas tentativas de controle, ou seja: o indivíduo está involuntariamente comprometido com a “ativação psicotrópica” em questão (assumindo que possamos empregar o conceito de dependência fora do contexto do uso de substâncias exógenas).
O próximo passo para julgar a pertinência das “novas adições”, portanto, é explorar esse aspecto: em que medida a prática constante e de alta frequência de atividade física é involuntária? Em que medida ela foge ao controle do indivíduo e, assim, prejudica outros aspectos de sua vida emocional, física e social?
Deixo essas perguntas ao leitor para retomar, em seguida, a discussão mais específica.

Marilia


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