X-Men 3 – The Last Stand

Assisti duas vezes. Resumidamente, a história envolve duas “questões” fundamentais e uma série de itens satélite: o desenvolvimento de uma “vacina” ou droga que supostamente anularia a mutação dos portadores, sendo batizada de “a cura”, e uma estranha ressurreição de Jean Grey, que havia se sacrificado no episódio anterior, morrendo sob tolenadas de água de uma represa.

As duas questões se imbricam: naturalmente, as relações entre o laboratório farmacêutico que desenvolveu “a cura” e o governo não são nada éticas ou neutras. Como alertou Erik Lehnsherr (Magneto), ela seria imediatamente imposta aos mutantes e utilizada como arma para liquidá-los. É precisamente o que acontece.

A estratégia mais “light”, tipo Martin Luther King, de Charles Xavier não funciona e o conflito evolui para um estado de guerra civil.

Enquanto isso, revela-se que quando Jean Grey “re-nasceu”, veio em seu “estado original”. Ficamos sabendo que ela é o mutante mais poderoso jamais surgido, o único nível 5 existente, e que seus poderes, localizados numa área “inconsciente” (amigdala?) do cérebro, tiveram que ser neutralizados por técnicas desenvolvidas por Xavier na adolescência de Jean. Como conseqüência disso, Jean teria desenvolvido uma dupla personalidade: de um lado, a racional Dra. Jean Grey, com poderes limitados. De outro, a poderosíssima Phoenix, movida somente por pulsões primitivas: desejo, raiva e medo.

Mas a “cura” causa ambivalências entre alguns mutantes, que não suportam sua condição diferenciada, a discriminação resultante disso e outros desdobramentos desagradáveis.

X-Men é minha historinha em quadrinhos e adaptação cinematográfica favorita. X-Men é divertido, mas fala ao meu coração: X-men é sobre a intolerância, a discriminação e o preconceito. X-Men problematiza as dores de se conviver com uma condição que diferencia o indivíduo dos demais. X-Men problematiza o que fazer com a diferença: curá-la, eliminando-a? Ou socialmente administrar a convivência entre os “diferentes” e os normais? X-Men é sobre a dúbia relação entre poder e fraqueza, virtudes e inadequações e como um é o outro lado da moeda do outro.

Naturalmente, me lembra a reflexão de Kay Jamison sobre os bipolares. Sim, não há dúvidas de que é uma condição potencialmente letal – e muito, conforme a gravidade. Não há dúvidas de que gera grande dose de sofrimento. No entanto, a mera constatação de que ela prevalece muitas vezes mais (cerca de sete vezes mais entre artistas do que entre não-artistas, ou 700% mais) entre indivíduos “super-dotados” do que na população em geral impõe um dilema ético (segundo a própria autora e re-escrito com minhas próprias palavras e perspectivas aqui): se tecnologicamente possível no futuro próximo, seria correto impedir o nascimento de portadores de propensão genética para a bipolaridade? Não estaríamos mediocrizando a humanidade? Por outro lado, ao não fazer isso, não estaríamos sacrificando esses indivíduos, condenando-os ao sofrimento para o “bem” da humanidade? O que é justo? O que é ético?

Eu, como bi-polar “nível 5” (grave, grave…) que ouvi dezenas ou centenas de vezes versões diferentes do enunciado “o outro lado do gênio é o louco”, tive meus grandes momentos de ambivalência. Já quis ser “normal”, seja com mordaça química ou social. Fui infeliz – um mutante não pode ser curado, não consegue ser convertido em “normal”. Vira apenas a sombra do que era, algo menos que humano.

Mas às vezes, no escuro, sangro em silêncio (não sei chorar, o único líquido que posso deixar escorrer é sangue) como Rogue, que abriu mão de seu “dom” em troca da chance de amar.

Lembro de outros “diferentes”. Lembro de um artista louco, vivendo num projeto interessante Canadense, se não me engano, explicando que nossas loucuras são, na verdade, “dons” (“gifts”), e não maldições. Que nós podemos ver “an infinite well of beauty in each point of reality” (um poço infinito de beleza em cada ponto da realidade). Que Beethoven nunca trocaria sua surdez pela audição se o preço fosse a perda do poder de “ouvir” a beleza do universo. E assim por diante.

Lembro das últimas frases de Roy Batty, o chefe dos andróides rebeldes em Blade Runner, enquanto segurava a pomba branca. Ele disse que viu naves explodindo, mundos em fogo, coisas maravilhosas que os humanos jamais imaginariam… e que tudo estaria perdido ali, naquele momento em que ele se extinguia.

Não, não é fácil ser diferente.

Principalmente quando as “diferenças” da gente dão poder absurdo a forças obscuras e incontroláveis, primárias, reptilianas. Foi chocante ver as transições nas expressões da Phoenix/Jean Grey. De calma para instantaneamente fera por um estímulo que gerasse medo ou raiva. Ou do ar libidinosamente predador quando vinha o tesão. Chocante foi lembrar quantas vezes me disseram que eu sou assim, que me transformo, que é assustador como meus olhos, expressões e até voz mudam sob raiva ou tesão. E medo… Medo imediatamente deflagra raiva ou seu equivalente em mim: matar ou morrer. Chocante e perturbador.

Finalmente, Logan. No início do filme, Scott Summers (Cyclops) se vira para ele no corredor e diz: “nem todo mundo se cura (“heal” é diferente de “cure” em inglês, é mais “consertar”, “cicatrizar” do que “curar”) tão rápido quanto você, Logan. E eu fiquei pensando nas minhas dores profundas e profundamente reais de amor e de ódio, e de como tão rapidamente elas cicatrizam. Minha irmã me dizia isso e perguntava como alguém podia passar tão intensamente por episódios destrutivos como eu e uma semana depois escrever um projeto novo. Às vezes até mesmo uma identidade nova, com tudo novo. Como se não fosse necessário muito tempo de luto ou elaboração.

Phoenix, re-nascendo das cinzas.

Logan, cicatrizando instantaneamente.

Mas Rogue, não: prefiro continuar mutante, ainda que o preço seja nunca poder ser amada. “Curada”, deixo de ser quem sou e aí… o que importa ser amada se nem sei quem está sob minha pele?

 

Marilia

 

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