Desde pequena, espero ansiosamente o ano das olimpíadas. A véspera da abertura tem até um pouco cara de Natal para mim, faço questão de assistir a cerimônia e invariavelmente choro, ao som daquelas musiquinhas mais cafonas do mundo, mas que mexem comigo.
Toda vez que visito rapidamente os Estados Unidos, dois lugares são de visita obrigatória para mim, desde sempre: o Metropolitan Museum of Arts, em Nova Iorque, e o complexo Smithsonian, em especial a National Gallery of Art e o Natural History Museum. Quando cheguei a Paris pela primeira vez, dura, deslumbrada e com uma mochila nas costas, a primeira coisa que fiz foi visitar o Louvre.
Quando adquiri minha “maioridade intelectual”, na defesa do doutoramento e tendo conseguido minha primeira verba de pesquisa como coordenadora de projeto, escolhi estudar a excelência científica no Brasil e na America Latina e acabei sendo provavelmente a pesquisadora que mais escreveu sobre a história e sociologia da pesquisa em Doença de Chagas, a maior descoberta científica feita neste país.
O que tudo isso tem a ver?
Marx uma vez escreveu que a ciência e a arte eram patrimônio universal da humanidade, em nada perdendo seu valor se à serviço ou associadas aos interesses de uma ou outra classe dominante. Marx foi talvez o intelectual que deixou o legado mais dolorosamente estuprado por seus seguidores, que estão entre os algozes mais eficientes da produção desses patrimônios.
Mas eu prefiro ir por outra linha. Me pergunto para que esses patrimônios são importantes? Há uma resposta utilitária: para que entendamos o mundo e melhor controlemos a natureza, melhorando a qualidade de vida da humanidade e alavancando a civilização. Eu acho que há uma segunda resposta, que é a que me importa aqui: essas três atividades, que de fato são as únicas capazes de constituir um patrimônio que se pode atribuir à humanidade, são as que expressam aquilo que todos nós buscamos, nosso significado como homens. Homens com H maiúsculo, não indivíduos do gênero Homo. Homens separados da natureza. A arte, a ciência e o esporte são o cerne da nossa existência cultural universal, aquilo através do qual temos alguma chance de nos enxergar como humanos. Porque é nelas que ocorre o que todos, invariavelmente buscamos: a EXCELÊNCIA.
A velocidade de Ben Johnson, as cores perturbadoras de Munch, o dilúvio sonoro de Beethoven e o salto paradigmático de Darwin emprestam a mim e a todos nós a humanidade que todos buscamos.
Nesse sentido, e só nesse, precisamos de heróis. Indivíduos que materializem nossa busca pela excelência, pelo “super-homem” que há em todos nós. A busca pelo único sistema que torna a humanidade minimamente digna de si mesma, que é a recompensa pelo MÉRITO.
Nesse sentido minha pesquisa e linha de publicação sobre Carlos Chagas nunca foi neutra ou desinteressada e sempre teve uma agenda, sempre acreditei que nós, como povo, precisávamos desse herói, um que sintetizasse a busca por algo que sistematicamente nos foi negado, que é a excelência científica.
Em nossa sociedade capitalista pós-industrial, onde a tecnologia e a informação tem o papel central no crescimento e desenvolvimento econômico, onde o conhecimento em si é uma commodity, é claro que da “trinca essencial” a ciência ganha de lavada em importância e valorização. Em seguida vem a arte, promovida a indústria, pois move um setor econômico poderoso e dinâmico (cinema, TV, etc.).
O esporte é o primo pobre, ainda que bastante turbinado por uma indústria poderosa que promove eventos, imagem e produtos. Mas, com isso, perde em significado e nós todos perdemos em apropriação desse significado para nossa própria construção como humanos.
Talvez por isso as olimpíadas ainda me comovam tanto… Por alguns dias podemos fingir que o que está em jogo, mais que os interesses poderosos desta ou daquela indústria ou poder político, é o mérito e a superação humana, o presente simbólico que nossos super-homens nos oferecem a cada quatro anos.
Marilia