A FEBRE DO FUNCIONAL

(Originalmente publicado na revista MUSCULAÇÃO E FITNESS, no. 77, 2009)

A grande febre do momento no mercado do Fitness tem um nome: Treinamento Funcional. O sobrenome é Core training, conhecido carinhosamente apenas como Core. O praticante antenado nas modas agora está de olho nas ofertas das academias. Tem funcional? Tem core? Então beleza. Se não tem, nada feito: procura-se outra instituição que ofereça algum produto com esse nome mágico.

Como não podia deixar de ser, o pedigree mais valorizado atende pelo nome de Body Systems, empresa que criou as marcas Bodypump, Bodycombat, Bodyisso, Bodyaquilo e agora veio com o super hype Core 360.

Mas… você sabe o que é Treinamento Funcional? E Core, tem idéia de onde veio isso? É a mesma coisa? São sinônimos? Um vem junto com o outro, que nem Barak-Obama ou Marilia-Coutinho, esta que vos escreve?

Sinto muito a água fria na fervura, mas não, não são um nome composto para uma mesma pessoa. A imensa maioria dos consumidores sequer faz idéia do que seja treinamento funcional e, menos ainda, de onde ele vem. Infelizmente, uma grande parte dos educadores físicos também não sabe, pois estão sendo esmagados por um bombardeio de informação publicitária que incorpora conceitos que eles aprenderam em seus cursos em outros contextos.

Hoje, treinamento funcional vem imediatamente associado às bolas suíças prateadas, BOSUs roxos ou cor-de-rosa, borrachas igualmente coloridas e outros equipamentos divertidos, coloridos e simpáticos, e à promessa de uma “barriga tanquinho”.

No entanto, o treinamento funcional representa um movimento em direção contrária à ênfase estética que dominou o mercado do Fitness durante os 40 anos em que se transformou numa tendênica macro-econômica de estável crescimento e enraizamento no capitalismo contemporâneo. O outro nome para treinamento funcional, para os estudiosos, é “treinamento movimento-específico” ou “dirigido ao movimento” (veremos as diferenças a seguir). Enquanto, durante 30 anos, o mercado de fitness foi dominado pela indústria de máquinas de movimento guiado, que procura isolar um determinado músculo para estimulá-lo à hipertrofia, nos últimos 10 anos foi crescendo uma onda que enfatizava o oposto. Em vez de isolar, a idéia era integrar em movimentos complexos.

Nada melhor do que um pouco de história para compreendermos conceitos e nos situarmos diante de algo confuso e meio quimérico, certo? Então…

 

De onde vem o treinamento funcional?

O treinamento funcional tem duas raízes, ambas tristemente associadas à Segunda Guerra Mundial. A primeira delas é a Fisioterapia.

No início do século, um grupo de médicos se organizou para desenvolver programas de re-habilitação na linha do que depois viria a ser a Fisioterapia. Não passavam de um grupinho pouco reconhecido de visionários. Até que veio a Segunda Guerra Mundial e despejou em solo americano milhares de cidadãos mutilados. Elevada ao status de prioridade nacional, a fisioterapia cresceu, se institucionalizou e ganhou notoriedade. Era missão dela recuperar para a cidadania aqueles indivíduos sacrificados na guerra com perdas maiores ou menores de seus padrões de mobilidade. Houve um avanço muito grande no conhecimento sobre o movimento humano (com o nascimento de áreas de estudo com nomes complicados como biomecânica, cinesiologia e psico-motricidade). Este avanço, ao contrário de outros fermentando dentro da redoma acadêmica, tinha uma transferência instantânea para a prática: o impulso dessa produção de saber era re-integrar as vítimas da guerra à sociedade que eles haviam defendido.

No final da década de 1950, os Estados Unidos foram atacados por mais uma tragédia: a epidemia de poliomielite. A polio, assim como a participação americana na guerra, gerou um imenso contingente de indivíduos cuja mobilidade foi permanentemente comprometida. Mais uma vez, coube à agora poderosa fisioterapia enfrentar o problema.

O desafio era gerar métodos de recuperação de movimentos perdidos. Como fazer isso? Com o tempo, os cientistas e fisioterapeutas criaram uma série de exercícios que conseguiam cumprir este objetivo. A característica mais importante deles era sua capacidade de estimular, no sistema nervoso central das vítimas, uma re-adaptação para aquele movimento perdido, além de um fortalecimento específico das estruturas envolvidas (músculos, tendões e ligamentos). O que se aprendeu é que isso só é possível quando o estímulo, ou exercício, é transferível. E o que vem a ser isso? Há uma resposta simples e uma bem complicada. A simples é que certos movimentos são, do ponto de vista do nosso cérebro, muito parecidos com aqueles que queremos melhorar. Esses são movimentos transferíveis. Outros são tão complexos, envolvem tantos planos, articulações e músculos integrados, que podem ser transferidos para muitos movimentos diferentes. Estes também são transferíveis. Exercícios assim são “movimento específicos” ou “dirigidos ao movimento”, e são a base do famoso treinamento funcional!

Enquanto estes esforços eram feitos nas clínicas e universidades, o mundo afundava na Guerra Fria. A expressão esportiva disso foi a Guerra Olímpica. Estados Unidos e União Soviética se degladiavam em busca da superioridade em medalhas. E, caro leitor, infelizmente poucas coisas estimulam tanto o desenvolvimento da ciência e da criatividade humana como a guerra. Nasceu, cresceu e se fortaleceu a Ciência do Treinamento Desportivo.

Os cientistas do Treinamento Desportivo, de um lado e do outro da Cortina de Ferro, perceberam o seguinte: a cadeira extensora não era de grande valia para aumentar a perfomance de um jogador de volei. O que seria necessário? Movimentos que incluissem mais articulações, mais planos no espaço, mais músculos e que melhorassem a agilidade, potência e coordenação destes atletas. Afinal eles saltam, correm, se jogam para pegar a bola e fazem outras peraltisses. O treinamento de força deles, portanto, era diferente do treinamento dos judocas, que precisavam, sim, de movimentos complexos mas também de muita força isométrica (força que se faz sem mudar o comprimento do músculo). Ou seja: existia especificidade. Judoca não é jogador de volei! Por outro caminho, os cientistas do Treinamento Desportivo chegaram à mesma conclusão que os fisioterapeutas e, responda para nós: deu ou não deu certo? Deu, né?

Até esse momento, treinamento funcional era quase sempre equivalente a treinamento com pesos livres (dumbells e barras com anilhas), que permitiam uma variedade quase infinita de variações sobre movimentos multi-articulares, multi-musculares e com qualquer velocidade e potência desejada.

 

O mercado do fitness e as máquinas de movimento guiado

Mas – e sempre tem um “mas” – quem manda no mercado é o lucro. E desde o final da década de 1950 já se anunciava essa nova tendência mundial: uma atenção maior no condicionamento e na forma física, bem como na estética através dos exercícios. Junto com essa nova percepção do público sobre a relação entre sua aparência e os exercícios, alguns visionários tiveram a “sacação” de inventar aparelhos onde o praticante se exercitasse com ênfase em um determinado músculo. Eram as máquinas de movimento guiado.

Em 1970, a Nautilus lançou no mercado a primeira máquina de movimento guiado do mundo: um aparelho de pull-over. Em 1984, as máquinas da empresa já eram utilizadas em mais de 3000 academias nos Estados Unidos. No rastro da Nautilus vieram outras que se tornaram impérios milionários: Life Fitness, Technogym e outras.

Os adeptos (e muitos deles cientistas) das máquinas de movimento guiado argumentavam que elas eram mais seguras e que desenvolveriam mais a força do músculo “certo” (aquele que chamamos de músculo motor primário do movimento) porque garantiriam a forma correta de execução mesmo em praticantes inexperientes. Neste período, o fisiculturismo ganhou uma popularidade nunca antes vista, com atletas de musculatura volumosíssima e perfeita como Dorian Yates. Dorian Yates treinava no sistema H.I.T., em grande parte com máquinas, cujo proponente original foi ninguém menos do que Arthur Jones, também inventor das primeiras máquinas Nautilus, que, como vimos, abriram uma nova onda no mercado. Yates era a prova viva de que as máquinas funcionavam.

Por anos, o que os praticantes olhavam ao visitar uma academia para se matricular eram as máquinas de movimento guiado.

 

O império contra-ataca: a volta do funcional

Como vimos, então, o funcional não é bem uma novidade. Durante anos, no entanto, ele ficou na sombra, sendo praticado apenas por atletas de elite, marombeiros experientes ou pessoas necessitando de re-habilitação. Nos anos 1990s começou uma tímida reação tanto entre cientistas, treinadores e alguns empresários do mercado de fitness: estudos vinham à tona mostrando que os ganhos em geral – de coordenação, de agilidade e também de força – eram muito maiores com os exercícios multi-articulares, multi-musculares, com variações na aceleração e estímulos para a coordenação. Apareceram os artefatos para criar superfícies instáveis e gerar estímulos neurais para coordenação: os sistemas BOSU, por exemplo, que são semi-esferas de borracha sobre as quais o praticante se exercita. As bolas suíças, inventadas na década de 1960, ganharam popularidade a partir daí.

No final dos anos 1990s, surgiram inúmeras empresas especializadas em “equipamento para treinamento funcional”, incluindo borrachas, cordas elásticas, BOSU, bolas e tudo mais que, devidamente orquestrado numa sala, mudavam inteiramente o espaço de treinamento que, por décadas, havia sido dominado apenas pelas pesadas máquinas de movimento guiado. O espaço mudou, a idéia de treinamento também e a palavra de ordem é FUNCIONAL.

Junto com isso apareceu a outra expressão que hoje tem até mais apelo comercial do que o incompreendido funcional: CORE. Quem sabe o que quer dizer “core” em inglês? Alguém já traduziu para você?

Pois bem, core quer dizer cerne, núcleo, centro. Vem da palavra latina para coração (cor). “Core training” é entendido por profissionais diferentes de diferentes maneiras. Porém, em comum a todos está a idéia de que a região pélvico-lumbo-abdominal (composta pelo seu abdomen, pelvis e região lombar) são, do ponto de vista postural, o seu centro. Pense bem: você é bípede ou quadrúpede? Então vou fazer a pergunta que meu amigo, o grande atleta Mendinho (Eumenes Leite, levantador de peso básico de Ribeirão Preto, que manja de funcional e core) fez: o que você fará se eu lhe empurrar? Não vale a resposta que eu dei, que seria xingá-lo. Faça essa experiência com um amigo COM CUIDADO: não é para derrubar o amigo – só para verificar o que acontece dentro de vocês! Percebeu que músculos você contrai para continuar em pé sem cair? Estes são os músculos que compõem o sistema do seu CENTRO ou CORE.

Existem quase que infinitas maneiras de se treinar o seu core, mas, até pelo exemplo que eu dei, é claro que introduzir instabilidade postural naturalmente estimula adaptações neurais para a eficiência motora nesta região, certo? É por isso que boa parte dos sistemas de “core training” trabalha com movimentos que incluem esta instabilidade.

No entanto, existe um outro sistema, desenvolvido em grande parte com a pessoa deitada, e não em pé ou se movimentando de forma instável, que foi pioneiro no treinamento de core: o Pilates. Pilates, outra febre publicitária hoje, foi um sujeito genial que ninguém entendeu durante décadas. Já morreu – não faço idéia do que acharia das inúmeras versões do sistema dele que andam por aí. Sobre isso falaremos em outra parte da revista.

Mas… e o funcional? Volto à pergunta: você é bípede? Então core training é basicamente funcional para você. Você e qualquer atleta do mundo necessitam FUNCIONALMENTE de algum treinamento de core. Mas você é jogador de golf? Não? Então qual é o benefício que os movimentos balísticos com rotação do corpo terão para você, já que foram desenvolvidos especificamente para melhorar a performance da tacada dos golfistas? É um exercício incrivelmente FUNCIONAL. Para golfistas!

Eu sou levantadora de peso básico – powerlifter. De vez em quando faço exercícios de sustentação da barra no supino. Não faço movimento algum, apenas sustendo pesos diferentes. Ou então acoplo correntes às barras e treino uma determinada porção do meu movimento que não está perfeita. São exercícios extremamente funcionais para meu esporte. Mas serão eles funcionais para meu amigo do Tae-kwon-do? Ou do tenis? Ou para você, que é veterinária e passa o dia com sobrecarga na lombar examinando animais?

Funcional, portanto, é trasitivo: funcional PARA QUE? Se a gente quiser complicar um pouco, core tem lá suas especificidades por esporte, mas muito menos, porque, afinal, powerlifters, tenistas, lutadors de boxe, veterinárias, engenheiros de sistemas ou dentistas… somos todos bípedes!

 

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