(Este texto é antigo, parte de um projeto para a OPAS, e foi postado para ajudar a reflexão para o próximo seminário de quarta feira, do dia 12/09/2012)
A literatura relativa às tomadas de decisão informadas na área da saúde aponta para a prática do que é chamado Evidence Based Medicine ou Medicina Baseada em Evidência (MBE). A prática de MBE implica a integração da expertise clínica individual com a melhor evidência técnico-científica produzida por pesquisa sistemática para tomar decisões em situações específicas.
Os inúmeros estudos quantitativos e qualitativos a respeito da MBE indicam que:
- A MBE é muito pouco praticada;
- Existem dificuldades importantes para a prática de MBE relacionadas à sobrecarga de informação, à estrutura da informação e à natureza da informação. Dados quantitativos revelam a quantidade de esforço necessário para o exame de fontes primárias de informação científica e técnica por parte dos profissionais da área da saúde para sanar necessidades específicas. Comparado ao tempo disponível para consumir essa informação (busca, leitura, análise e decisão), demonstra-se que é impossível utilizar as fontes primárias de informação para tomar decisões. Inferências teóricas (do campo da Teoria da Informação) ajudam a explicar por que a estrutura da informação no formato de artigos originais de pesquisa reduzem a qualidade da decisão baseada na mesma ao ponto de inviabilizá-la. Finalmente, apenas uma pequena fração dos artigos originais publicados apresenta evidências úteis, adequadamente testadas e constituem informação nova num tópico de prática clínica;
- Contraditoriamente, existem casos bem sucedidos de utilização de fontes primárias de informação para a prática de MBE. Estes ocorreram em contextos específicos de hospitais universitários ou de pesquisa;
- É necessário treinamento para a prática de MBE, que consiste em transformar a necessidade de informação numa questão respondível, acessar as fontes de informação, analisar e avaliar a relevância, qualidade e aplicabilidade da informação resgatada e utilizar a informação para tomar uma decisão;
- O processo decisório é complexo e exige conteúdos de informação de determinados tipos;
- O processo decisório exige um formato para a informação que sintetize as contribuições técnico-científicas mais relevantes e atualizadas para determinada decisão, que identifique claramente o consenso médico do momento relacionado a essa informação e que identifique claramente as recomendações derivadas dessas contribuições;
Existem sistemas on-line que disponibilizam diversos tipos de produtos de informação sobre saúde, inclusive revisões sistemáticas e guias de prática clínica. O desenvolvimento desses sistemas é complexo, relativamente demorado e requer a participação de profissionais de diversas especialidades.
Nem sempre estes sistemas estão disponíveis no ambiente de trabalho dos profissionais da área da saúde. Quando estão, nem sempre os profissionais possuem as habilidades e outros requisitos para a utilização dos sistemas.
As necessidades de informação, por sua vez, não derivam de forma simplista das intervenções individuais, mas são articuladas socialmente. A estrutura das comunidades de usuários condiciona fortemente a forma com que os usuários se relacionam com suas necessidades de informação, desde a identificação da necessidade até a mudança de comportamento (implementação da decisão) resultante de inovação.
Para identificar as necessidades de informação de profissionais da área da saúde, vários métodos têm sido empregados, como os surveys de amostra aleatória, os grupos de foco, as abordagens etnográficas, as entrevistas em profundidade, as entrevistas de narrativa e as entrevistas episódicas.
A controvérsia técnica e as tomadas de decisão em saúde
A controvérsia é, em maior ou menor grau, o mecanismo responsável pela mudança científica. Bruno Latour descreveu o processo de esoterização, e, portanto, de sofisticação técnica, metodológica e teórica, que ocorre ao longo das controvérias científicas (1987). Assim, a controvérsia seria a base do progresso científico, embora alguns autores evitem o conceito. A introdução de inovações produz a clássica estratificação da comunidade de praticantes entre um extremo de inovadores, ou risk-takers, e um extremo de retardatários, ou risk-averse. Essa estratificação está relacionada principalmente à estrutura social (hierárquica, institucional e generacional) da comunidade em questão. No entanto, a inovação está, geralmente, associada à controvérsia. O sucesso ou fracasso de sua introdução como parâmetro de prática ou de modelo teórico estão relacionados, nesse caso, a um jogo de interesses que mobiliza um grande esforço de articulação da informação científica existente e interpretação do lugar de cada evidência no quadro da controvérsia. A elite da comunidade controla o jogo e produz o discurso argumentativo que se expressa na produção científica do momento. Quanto menos diretamente envolvido na controvérsia estiver o praticante, e, portanto, mais distante do centro de poder da comunidade, menor a familiaridade com os argumentos e maior a perplexidade diante do conflito. Os praticantes menos envolvidos, que constituem a maioria da comunidade, tendem a ser risk-averse ou retardatários nessas circunstâncias. Kuhn (1971) e outros representantes clássicos da sociologia da ciência interpretam a resistência típica da comunidade científica à mudança como produto de um conservadorismo intrínceco, de uma dificuldade em se desvencilhar da visão de mundo associada ao velho paradigama. Essa resistência pode ser interpretada, alternativamente, como resultado da dificuldade de “make sense” da massa de nova informação produzida sob os eixos da controvérsia. As comunidades envolvidas em controvérsia têm, portanto, uma relação mais crítica com a nova informação científica e técnica da área e possivelmente apresentem necessidades especiais, como ferramentas, produtos e formatos de disponibilização de informação que dêem maior visibilidade à controvérsia e às tomadas de decisão implicadas nas alternativas em jogo.
Implicações da controvérsia para a metodologia da pesquisa
A controvérsia produz mudanças estruturais na comunidade onde incide. A comunidade fica, assim, estratificada segundo o conteúdo e polaridade da controvérsia. As demandas por informação de uma comunidade assim estratificada só podem ser conhecidas se ela for sondada segundo essa estratificação. Assim, é necessário ter um mapeamento preciso da controvérsia e dos efeitos sociais da mesma na comunidade para planejar a sondagem de cada estrato, que podem variar quanto suas características institucionais, das relações sociais intra-grupo, generacionais, etc. Além disso, é preciso ter conhecimento da controvérsia para planejar roteiros de entrevistas e levantamentos sobre a cultura da comunidade.
Consequentemente, um passo que antecede o estudo sobre o tipo de tomada de decisão, produtos de informação e todos os passos subsequentes da pesquisa é um mapeamento das controvérsias da área do público-alvo.
Outra consequência metodológica é que o estudo da estrutura social da comunidade deve ter como preocupação fundamental a identificação das sub-comunidades estruturadas pela controvérsia. Cada uma delas deve ser tratada como uma comunidade independente para efeito de elaboração do roteiro da entrevista, no ítem subsequente.
Finalmente, devem ser estudadas as relações entre as sub-comunidades e suas implicações para a apropriação de informação.
O mapeamento da controvérsia deve incluir uma tipologia das questões de pesquisa para orientar estudos bibliométricos. Não interessa conhecer os parâmetros da produção científica da área com um todo, apenas. É necessário estudar a dinâmica da produção relacionada com as várias temáticas e “escolas”.
A identificação de produtos e, principalmente, do formato de sua disponibilização só podem ser feitos respeitando as necessidades configuradas pelas controvérsias.
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