Há dois dias, meu amigo Ace of Spades me chamou para uma “reuniãozinha” virtual. No ambiente do msn, estávamos ele, eu e mais três amigas dele, as quais ele havia chamado (no msn, é possível “convidar” contatos para uma conferência). Ele apresentou cada uma de nós. As três outras mulheres lutavam com questões relativas a obesidade: duas fizeram cirurgia no estômago e outra se submeteu a uma dieta muito rigorosa. Depois ele convidou mais duas mulheres com problemas semelhantes. Ele disse apenas que costumava recomendar musculação para esse “tipo de situação” (não demos muitos nomes, mas trata-se de obesidade e dificuldade de administrar a própria composição corporal) e então me apresentou como uma mulher musculosa, que entendia de dieta e… “de disciplina”. Acrescentou que gostaria que trocássemos endereços, contatos e “confidências”.
Quando Ace nos colocou a todas numa sala para conversar, nos deu várias oportunidades que, sem um catalizador, não ganham impulso para acontecer. A primeira foi a oportunidade da empatia. Somos todas mulheres, enfrentamos muitas coisas iguais sob o ponto de vista da coersão social, da percepção de imagens culturalmente dominantes, da nossa sexualidade e de como isso tudo afeta nossa relação com nossos corpos. Mas, em condições normais, não nos percebemos. Fazemos parte de grupos que dificilmente se enxergam ou se aproximam. Tenho amigas gordas, mas nossa interação é num campo “a-corporal”, coisa que só é possível numa sociedade que proporciona essa condição de alienação de si mesmo. Somos profissionais, mães, colegas, intelectuais e nos relacionamos por essas condições, as quais cuidadosamente “limpamos” dos vestígios corpóreos. Viramos mães abstratas, intelectuais abstratas, sem perna, sem bunda, sem barriga, sem buceta.
Ace nos deu, naquele momento, a oportunidade de suspender essa confortável mas opressora alienação corporal. Estávamos ali como mulheres encarnadas, e muito cheias de carnes, embora num ambiente digital.
A segunda oportunidade foi a de romper a barreira cultural. Culturas são sistemas auto-referentes, que proporcionam contexto para as representações que o grupo constroi. Como tais, são relativamente auto-contidas: os significados são partilhados pelos membros da cultura e pouco tradutíveis para quem está de fora. Mas levar isso ao pé da letra é um radicalismo que eu tenho questionado cada vez mais, principalmente no que diz respeito a essas “sub-culturas” urbanas, todas elas parte de uma mesma sociedade industrial complexa. A gente pertence a várias culturas nesse tipo de sociedade. Mas ali, no ambiente digital pilotado pelo Ace, eu era representante da mais pura cultura da maromba. As outras moças eram parte de uma cultura menos coesa, com menos laços internos e códigos, mas mesmo assim, se tiverem sorte, se acham e se identificam. São as portadoras de desordens alimentares. Uma cultura não enxerga a outra e até se repelem em certos ambientes, como academias.
Vejo pelos comentários um pouco hostis de alguns conhecidos meus que a disciplina que nós, marombeiros, partilhamos, é vista como futilidade: nos preocupamos com cada 200g ganhas ou perdidas, com o preço do peito de frango para fazer estoque, com a qualidade da proteína de cada alimento e contamos o conteúdo de gordura nas embalagens dos produtos. Marombeiros muito xiitas como eu possuem logs de todas as suas rotinas de treino, cargas aumentadas, mudanças feitas, perdas e benefícios computados. Mas isso foi “traduzido” pelo Ace como “disciplina”, porque é algo que conquistamos e com o que podemos contribuir. Algo que faz parte da nossa vivência diária, que é um tipo de saber diferente da informação técnica. A mim, me deu a chance de perceber como é essa outra estratégia de construção do corpo adotada por quem luta com gordura corporal, algo que implica uma dose muito grande de coragem e sacrifício, de re-elaboração da própria imagem. Ace fez algo por todas nós, ali que não conheço nenhum avançado programa de tratamento que faça.
Ace é um artista – eu o conheço mais como artista gráfico, pelos desenhos que faz de mulheres musculosas. Sempre o interpretei como um portador de uma percepção aguda de uma estética alternativa, exibindo esse novo “belo” sem submissão ao dominante.
Vejam o site dele http://www.spades.hpg.ig.com.br/
Hoje eu acho que a percepção dele vai muito mais longe: Ace realmente vê o belo. Mais que isso, é um desses seres raros que acrescenta o belo ao mundo, dando aos outros a chance de se verem belos, de verem-se uns aos outros como belos e, agora posso dizer, acrescentando sua própria beleza ao planeta. Ele é muito lindo, por dentro, por fora e pelos lados, por onde esparrama essa beleza.
Marilia