Acertando o rumo – a herança do anti-doping

Segunda-feira eu devo ser liberada para começar a andar novamente. Foi um mês e meio de retiro espiritual compulsório. Durante este período, aprendi muita coisa. Explorei “ad náusea” os limites da minha autonomia, adotei uma alimentação e suplementação muito regradas e, com a volta aos exercícios de respiração e meditação da yoga, eliminei o uso de qualquer medicamento para induzir sono ou combater dor.

Foi também um período saudável de afastamento de ambientes e interações estressantes. Dei aula, treinei quieta no meu canto, competi e testei minha engatinhante habilidade de foco e concentração. Fiquei satisfeita com esse começo.

Muitas mudanças externas e internas. Aos poucos, fui me adaptando às muletas e a vida mais reclusa. E aos poucos, senti meu corpo se limpando das drogas que usei até junho na angustia de me adequar ao exame anti-doping ao qual deveria me submeter.

A estratégia, adotada por muitos, segue o seguinte “rationale”: é preciso eliminar fármacos com tempos de detecção mais longos, substituindo, no período pré-contest, por fármacos de tempos de detecção curtos e assim se apresentar “limpo” no dia do exame. Em geral, são drogas de meia-vida curta, que provocam picos e vales acentuados.

Quando se trata de hormônios masculinos, essas variações nos níveis séricos são ruins para todos, mas catastróficas para as mulheres. A alternativa que muitas atletas utilizam é usar sistematicamente hGh (hormônio de crescimento humano). A administração de hGh em doses altas pode levar a uma inibição crônica da produção endógena.

No meu caso, nem cogitei essa alternativa: meu problema era prevenir o ressurgimento dos sintomas da minha desordem bipolar, há quase dois anos controlada com mesterolona. Mesterolona é um esteroide da lista proibida, com tempo de detecção superior a 5 semanas. Portanto, parei de tomar proviron e comecei a usar esteróides de tempo de detecção mais curtos. Usei cipionato e propionato de testosterona e também testosterona aquosa, além de oximetalona.

O resultado foi horroroso. Não esqueço do dia em que tomei definitivamente a decisão de abrir mão do campeonato brasileiro da federação que faz teste anti-doping (as outras não fazem). As variações hormonais tinham afetado a tal ponto minha capacidade cognitiva e equilíbrio emocional que eu vivia em constante confusão. A cada queda brusca de testosterona, vinha uma onda de depressão e uma menstruação hemorrágica. Nesse dia, sangrando pela terceira vez na semana, sentindo uma espécie de nuvem atrapalhando minha percepção do mundo, sentei e me declarei vencida: não dava.

Voltei a usar a mesterolona e em uma semana me sentia melhor, meus pensamentos mais claros e as emoções sob controle. O mundo, lá fora, explodia em brigas e conflitos, mas eu havia recuperado a serenidade necessária para enfrentá-lo.

Só agora, mais de dois meses depois, no entanto, é que alguns dos efeitos colaterais começaram a regredir. Outros, levarei mais um ano para combater.

Minha pele se estragou completamente: acne, mudança na textura, manchas. Olho meu rosto no espelho e chego a me assustar: mudança na localização da gordura sub-cutânea, rugas que não existiam, queda de cabelo.

Agora a pele ficou clara e a textura melhorou um pouco. A acne, aos poucos vem melhorando. Os pelos do rosto, vou começar um longo tratamento para eliminação com laser. Outros colaterais, minha dermatologista e talvez um cirurgião plástico resolvam.

Talvez o que mais me incomode é que nunca mais vou recuperar minha voz. E quando a Mel me pedir, como sempre pediu, para cantar as canções que cantei para ela desde que estava na minha barriga, pela primeira vez em 18 anos não poderei satisfazê-la.

Tomei mesterolona por quase dois anos, sem nenhum efeito colateral e nenhuma alteração metabólica. Tomei nandrolona em baixa dose para lesões, sem nenhum problema. Mas dois meses de bola “de homem” fizeram uma revolução no meu organismo.

Competi há uma semana sem nenhuma droga: nada de cipionato, propionato e nem efedrina. Como todo mundo, usei algo disso nas demais competições do ano. Fiz, nesse último campeonato, minha melhor marca e tive meu desempenho mais controlado e eficiente. Testei e comprovei: qualquer que seja a vantagem das drogas mais fortes na performance, para mim, a ausência delas compensa. Nunca vou saber por que: talvez elas, em mim, causem uma perda de foco relevante, atrapalhando o desempenho. Talvez não tenham efeito mesmo no aumento da força (no meu organismo). Não tenho como saber sem testes que jamais farei.

Eu pratico meu esporte porque me dá prazer. Participo de competições pelo estímulo da auto-superação. Não ganho dinheiro com powerlifting, pelo contrário: invisto o que ganho com meu trabalho não relacionado ao esporte. Nada justifica que eu deixe de tomar um medicamento necessário. Nenhum troféu ou medalha vale minha saúde.

Acho que a lição disso é que em nome de uma hipocrisia institucional muita gente comete violências injustificáveis contra o próprio corpo. A violência vai continuar, pois tem motivações econômicas e culturais num plano “macro”. Cabe a nós decidir se sujeitar a ela e legitimá-la, ou não.

 

Marilia

BodyStuff

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