Algumas considerações sobre bola

Esse é um dos assuntos que considero mais complicado discutir, mas alguma hora é preciso enfrentar e organizar as idéias. Particularmente agora, quando boa parte das pessoas que me conhece ou conheceu antes, em algum momento da conversa, me pergunta se o que consegui com meu corpo foi com bola. Até agora, respondi: “não, sem toddynho”. E a resposta, invariavelmente foi: “ah, que bom, graças a deus”. Como se eu estivesse sempre sob risco mortal de cair em algum tipo de pecado, ou seita, ou desvio inaceitável.
A primeira consideração é uma comparação. Quase todos que me conhecem sabem que eu fui usuária de drogas recreacionais ilegais. Ninguém se preocupou se eu me tornaria uma drogadicta, no entanto. Nunca: alguém com meu histórico escolar, minhas teses e artigos não correria esse tipo de risco. Bem: não só corri, como certamente tive períodos de dependência, os quais foram controlados de forma relativamente fácil.
Quanto a álcool, que é legal, algumas pessoas chegaram a se preocupar, com toda razão, porque minha relação com essa droga foi preocupante. Mas ninguém me perguntou com ar de pânico se eu usava álcool, como me perguntam hoje sobre bola.
Finalmente, fui usuária de todo tipo possível de psicotrópico, e muita gente sabe disso. Ao contrário das reações anteriores, não enfrentei indiferença, e sim encorajamento. Essas drogas, cheias de efeitos colaterais sérios, alguns irreversíveis, eram amplamente aprovadas por amigos, parentes e associados. Quase morri pelos efeitos colaterais, mas isso não estimulou reações contrárias a essas drogas.
Há algo, então, na bola que estimula a reação de rejeição que eu observo. Obviamente não é porque se trata de um medicamento não prescrito por médicos. Ninguém me prescreveu maconha, mas meu uso dessa droga nunca causou problemas.
John William publicou uma interessante reflexão sobre o tema em “The Demonization of Anabolic Steroids” (http://www.mesomorphosis.com/articles/williams/demonization-of-anabolic-steroids-01.htm) , onde relaciona a reprovação social da bola ao efeito hipertrófico e de aumento de força da droga. A força, em si, seria objeto de demonização. Eu diria que os músculos a ela associados, idem.
Minha perspectiva sobre o assunto vai mais ou menos na seguinte linha: esteróides anabolizantes são um recurso tecnológico, como qualquer droga desenvolvida pela indústria farmacêutica. Uma substância biologicamente ativa, quando identificada, é testada em diferentes sistemas e pode ser ativa em mais de um. Assim como não existem magic bullets, não existem magic targets. A indústria identifica targets e o mercado, sim, essa grande força resultante de tantos vetores distintos, seleciona qual, em cada momento, será priorizado para comercialização. Os esteróides anabolizantes podem ter diferentes usos terapêuticos ou não, porque seus efeitos são muitos. Mas obviamente existe um mercado substancial para seu efeito anabolizante.
Esse efeito foi muito valorizado pelos componentes comercial e político do esporte profissional. Todo e qualquer recurso tecnológico será empregado na concorrência empresarial – isso faz parte da lógica do capitalismo. O esporte tem fortemente esse lado empresarial. O outro é o político, altamente estimulado durante a guerra fria: o esporte simboliza e retro-alimenta expectativas de superioridade nacional. A competição entre potências estimulou um rápido desenvolvimento de técnicas de treinamento e recursos tecnológicos para aumentar a performance atlética.
Nada disso é bom, nem mal. Simplesmente é. É a nossa realidade histórica.
O desenvolvimento de novas e mais poderosas tecnologias, por outro lado – a resultante das forças de mercado e políticas que mencionei -, não merece neutralidade: esse eu considero altamente positivo. Numa mesma cadeia tecnológica, as inovações mais recentes são sempre mais eficientes, menos nocivas e trazem inúmeras outras vantagens que, eu acredito firmemente, contribuem para melhorar a qualidade de vida humana, seja individual ou coletivamente. Outros fatores que podem levar o mundo ao caos não vêm ao caso aqui – a culpa não é da tecnologia.
Desenvolver opióides narcóticos e analgésicos é altamente benéfico e possibilita grande redução de sofrimento humano. Dependência de heroína não é, mas se trata de um outro fenômeno, apenas relacionado ao desenvolvimento tecnológico pelo objeto.
Da mesma forma, é óbvio que eu me preocupo com o uso de anabolizante de boi por adolescentes pobres nas periferias das grandes cidades. Mas de maneira nenhuma considero que isso se relaciona com o desenvolvimento de uma linha de inovação farmacológica em esteróides anabolizantes, nem com o seu uso por atletas.
O esporte é uma atividade competitiva e eu considero a cruzada moral anti-doping bastante hipócrita. Ela oculta uma realidade econômica e social que se impõe pela força e pela engenhosidade. Sempre existirá o emprego de recursos tecnológicos variados para garantir o aumento da performance atlética. Coibir parte de uma categoria desses recursos reflete um moralismo ingênuo.
Também não reprovo o uso em atletas recreativos e acho que, com a disponibilização de informação não-moralista, a opção de se, como e quando usar bola será feita de maneira muito mais segura. Eu acredito firmemente que a qualidade da tomada de decisão está diretamente relacionada à disponibilidade e uso da informação técnica relevante.
Não vejo muita diferença da opção pela reposição hormonal pós-menopausa. Ela é abertamente reprovada pela medicina mainstream porque o seu emprego indiscriminado gerou problemas de saúde pública. No entanto, eu e todas as mulheres educadas que defendem a manutenção de uma boa qualidade de vida nessa fase vão adotar ou já adotam esse recurso. Por enquanto, a reposição hormonal ainda está associada a determinados riscos, riscos esses que nós assumimos, de maneira informada.
Com o tempo e o desenvolvimento tecnológico – desde que não seja criminalizado ou banido -, esse recurso tenderá a se tornar mais eficiente e seguro.
O mesmo deve ocorrer com os esteróides anabolizantes.
Quanto ao efeito de qualquer dessas drogas – bola ou repositores hormonais femininos – sobre uma pretensa “natureza” que deveria ser intocada, bem, isso acho que já deixei claro em outros posts que considero total bullshit.

Marilia


BodyStuff

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