Ontem foi publicado um excelente artigo do psicólogo esportivo João Ricardo Cozac a respeito da motivação patriótica, da administração emocional, pelo atleta, das expectativas coletivas quanto à sua vitória e dos paradoxos envolvendo tais elementos do ponto de vista da estrutura psicológica da motivação.
Acredito que João Ricardo deu conta do doloroso reflexo subjetivo desta condição. Meu objetivo com este artigo é discutir o mesmo problema do ponto de vista do outro lado da moeda: a perversa necessidade coletiva de devorar símbolos materializados em papéis impostos a certas categorias de pessoas. Duvido um pouco que essa necessidade tenha nascido da indústria midiática. Tudo indica que está aí desde muito antes. Mesmo sem uma relação de causa e efeito entre a apoteose midiática olímpica e a atropofagia destes mitos, é óbvio o papel reforçador e formatador da mídia sobre ela.
Vimos inúmeros exemplos de atletas criticados duramente na imprensa formal e nas mídias sociais. Foram rápidos em condenar Diego Hipólito, Fabiana Murer e mesmo Fernando Reis. Este último proporciona um estudo de caso interessante, onde a reação da comunidade esportiva foi tamanha que o artigo digital foi tirado do ar.
Todos estes atletas pertencem a modalidades que permanecem virtualmente ignoradas pela opinião pública e mídia durante quatro anos. Quem sabe o que é a ginástica olímpica? O salto com vara? E o levantamento olímpico? Pouquíssima gente. Quem sabe e não é atleta ou profissional da área certamente não tem a menor condição de emitir um julgamento adequado sobre qualquer aspecto técnico da performance do atleta. Mesmo nós, que somos profissionais da área, não temos como opinar sobre a maioria dos esportes, os quais apreciamos com, no máximo, um “olhar informado”. O que nos diferencia do resto da população é que a ação carnavalesca da mídia não tirou nosso bom senso a ponto de compreender que, se estão em Londres, passaram por anos de uma seleção rigorosíssima que os colocou entre os mais capacitados do mundo em suas modalidades. O quão mais capacitados, é o que uma competição mede.
A opinião pública brasileira foi deseducada para a apreciação dos esportes pelo futebol. Longos anos de tradição de uma observação acrítica e performática colocaram em segundo plano a apreciação da excelência da performance para promover o foco na simplicidade maniqueísta de um jogo de moedas: o que acontece entre o início e o fim do jogo é irrelevante, pois o que interessa é saber que houve um ganhador (vencedor) e um perdedor (derrotado).
Os símbolos que a população consome através dos meios de comunicação são aqueles vinculados a estas duas figuras: vitória e derrota, vida e morte.
Os atletas profissionais convivem desde sempre com esta esquizofrênica realidade onde necessitam vivenciar profundamente o aspecto solitário e interno da preparação e performance esportiva e ao mesmo tempo são super-expostos a multidões que os observam, interpretam, invadem, examinam, se emocionam, criam vínculos afetivos imaginários e, enfim, os consomem. Eles são capas de revistas, pôsteres nos quartos de garotos ou garotas, comerciais e até filmes. Eles viram mercadoria como qualquer celebridade.
A coisificação e estereotipação das celebridades que gera as reações de veneração e achincalhamento são antigas. Segundo alguns especialistas, sempre existiram. A celebridade, subtraída de sua humanidade para encarnar apenas determinados ideais, permite às pessoas acessar elementos fundamentais de suas expectativas e emoções. Antes de mais nada, é preciso entender que a celebridade NÃO é um ser humano para aqueles que a veneram: é um “tipo ideal”, a encarnação de algo supremo e profundamente desejado ou rejeitado. Enorme beleza física, tamanho, habilidade, entre outros elementos que são humanos, mas se expressam em condições extremas ou são assim projetados pela mídia.
Essa população urbana, que sofre os males do isolamento social que os grandes aglomerados produzem, mais vulnerável às necessidades que só podem ser supridas pelos estereótipos das celebridades, é apresentada, a cada quatro anos, ao que de mais próximo lhes parece serem os Super Homens: os atletas.
Estes, durante quatro anos não fazem idéia do que é essa vivência, pois são ignorados por tudo e todos e levam suas vidas esportivas no silêncio. Ao contrário dos atores e músicos, por definição exercendo algum tipo de manejo desta relação coisificada, os atletas não são treinados para isso.
Misturemos ao triste exercício da coisificação de celebridades os ingredientes irracionais e perigosos do patriotismo, religião e outros componentes explosivos.
Pronto: temos preparada a orgia antropofágica. Nos atletas, em geral jovens e despreparados emocionalmente, será depositado todo o lixo emocional, afetivo, ideológico e político de uma coletividade de milhões de pessoas. Sejam bem ou mal sucedidos, serão devorados.
Antropofagia olímpica: trágico espetáculo.
Bom artigo para se ler:
The Psychology of Celebrity Worship
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