Cheiros 1: Phantosmia, dysosmia, ou os odores que ninguém cheira mas você sente mesmo assim

 

Introdução

 

Ninguém dá muita bola para o olfato, mas ele é importante. Principalmente se o seu não é muito normal.

O olfato é um sistema sensorial que serve para detectar várias substâncias que chegam pelo ar ou dissolvidas em líquido. Junto com o gosto, compreendem os “sistemas quimio-sensoriais”. Nem tudo que vem pelo ar “cheira”, no sentido subjetivo, como um registro de uma nova impressão. Certas substâncias não podem ser conscientemente apontadas e descritas, mas mesmo assim estão lá, são detectadas, se transformam em informação através de um complexo sistema neural e geram uma resposta no cérebro.

As substâncias chegam pelo ar, em geral, e entram pelo nariz, onde, no epitélio olfativo, se ligam a receptores próprios para isso nos neurônios receptores olfativos. Nesse momento ocorre a primeira “tradução” importante: a substância é traduzida em informação, através do disparo de um impulso elétrico no neurônio olfativo. Essa informação corre através do nervo olfativo até o bulbo olfativo, onde os axônios formam estruturas chamadas glomérulos. Neurônios são células com estruturas ramificadas nas duas extremidades (dendritos), através das quais formam redes uns com os outros. Essas redes são a arquitetura básica que organiza a informação no cérebro. Algumas das células que transmitem a informação dos glomérulos para diante são as células mitrais, a partir das quais ela vai para várias estruturas no cérebro, entre as quais o núcleo anterior olfativo, o tubérculo olfativo, o córtex piriforme, a amigdala e o córtex entorhinal. Exatamente que funções cada uma dessas estruturas desempenha é algo que ainda não é muito claro, mas o córtex piriforme parece ser a região que mais opera a percepção consciente do odor, o córtex entorhinal está ligado à memória e a amigdala é onde muita coisa complicada se integra: a amigdala é uma estrutura que processa, forma e registra informação emocional. Reação de “fight or flight”, respostas imediatas a stress e estímulos associados à risco e dano potencial são mediadas pela amigdala. É significativo que ela seja tão relevante na informação olfativa.

Nós temos dois sistemas olfativos: o principal e o acessório, que parece processar estímulos veiculados por fase fluida. Algumas evidências sugerem que esse último seja responsável por processar informação feromonal. Feromonios são substâncias ativas em termos de comunicação química, mas que operam uma comunicação entre indivíduos (diferentes dos hormônios, que são comunicadores químicos internos, de um órgão a outro do mesmo indivíduo).

 

O Olfato Humano

Você já ouviu alguém dizer que “fulano tem nariz de cachorro”? Em geral é um tipo de elogio, no sentido de que “fulano” tem muita acuidade olfativa. Todos nós temos essa noção de que outros animais têm muito melhor olfato do que nós. A evidência científica até hoje corroborava essa idéia intuitiva: o número de genes para receptores olfativos é muito menor em humanos do que em ratos; há muito maior densidade de neurônios olfativos em cães do que em humanos; a vascularização da região também é maior em outros animais. Enfim: tudo indicava que ao longo da evolução, o olfato foi perdendo importância para a visão como sentido de processamento de informação ambiental em primatas, e em especial em humanos.

Shepherd (2004), no entanto, publicou um interessante artigo mostrando que há um paradoxo entre estes fatos e a constatação empírica de que humanos têm uma acuidade olfativa muito maior do que a imaginada. Segundo Shepherd, esse mistério só pode ser melhor compreendido se o olfato for abordado em toda a sua complexidade, incluindo aspectos anatômicos (as cavidades nasais e oro-faríngea), o sistema olfativo cerebral e o papel da linguagem. Para esse autor, o que iludiu por anos os cientistas era o foco exagerado no bulbo olfativo e no trato olfativo lateral, que são realmente menores em humanos. No entanto, muito mais relevantes para o processamento da informação olfativa são as regiões centrais que integram elementos cognitivos e emocionais de maior complexidade. Assim, o cérebro humano, diferente do de outros animais, é capaz de agregar muito maior poder cognitivo à discriminação de odores. Para Shephard, a tarefa exclusivamente humana de traduzir a informação sensorial em linguagem, criando e integrando categorias, acrescenta elementos à acuidade olfativa.

Existe relativamente pouca pesquisa em relação ao olfato humano. Ninguém dá muita bola para o olfato, para seu significado, para as desordens relacionadas e ele e muito menos para suas implicações psico-neurológicas.

 

Distorções olfativas

Existem dois tipos básicos de distúrbios olfativos: um é a perda do olfato (hyposmia ou anosmia) e o outro são as distorções (disosmias). As disosmias podem ser mudanças na sensação subjetiva do odor (quando o cheiro é diferente do cheiro que lembramos para aquela objeto ou substância, também chamado de troposmia, ou quando o cheiro é de algo diferente do emissor, também chamado de parosmia), ou o indivíduo pode sentir odores quando (aparentemente) não existem emissores de odor no ambiente, o que caracteriza uma alucinação (phantosmia). Assim, a banana pode ter um cheiro diferente do que lembramos para bananas, ou a banana pode cheirar peixe podre ou podemos sentir cheiro de peixe podre quando não há nenhum por perto.

Geralmente, essas condições estão associadas a distúrbios no sistema olfativo. Podem ser causadas por infecções virais, trauma craniano, epilepsia ou mesmo algumas desordens psiquiátricas.

A presença de disosmias e phantosmias durante a recuperação da perda olfativa é observada (Renden et al 2006) em condições patológicas.

Leopold (2002) fez uma revisão extensa da literatura relativa às distorções olfativas, mostrando que a origem destas condições pode ser tanto periférica quanto central. Também detalhou as condições psiquiátricas relacionadas à phantosmia como esquizofrenia, psicose alcoólica, depressão e síndrome de referência olfativa. Outros autores mencionam phantosmia relacionada a Borderline Personality Disorder, coisa que eu mesma leio com bastante cautela: BPD é a lata de lixo psiquiátrica, uma condição que para mim é próxima de um xingamento elegante. É caracterizada como um comportamento dramático de chamar atenção sobre si. Ou seja: o sujeito é um mau-caráter e se trata com bastante neuroléptico para que pare de encher o saco. Tudo que se atribui a BPD eu tendo a desconfiar. E, em algum lugar de pouca autoridade científica, li que é freqüente a menor acuidade olfativa entre bipolares, e até mesmo um tamanho reduzido da amigdala. Não achei as bases empíricas desta afirmação em formato bem publicado, mas fica o registro.

 

Quando não é uma coisa, nem outra

Eu tenho uma excepcional acuidade olfativa – desde pequena. Um neurologista que esteve entre a meia dúzia de pessoas ao longo da vida com quem antipatizei de graça instantaneamente me pediu uma ressonância da cabeça. Suspeitava de um tumor maligno por causa do que chamou de “odores inefáveis” e hoje sei que se referia a phantosmia. Depois ele me diagnosticou, contra todos os outros diagnósticos de outros profissionais antes e depois dele, como portadora de BPD, confirmando minha hipótese de que BPD é apenas um xingamento. Ele não gostou de mim e nem eu dele. De modo que para ele eu era BPD e para mim ele era um canalha.

Eu não sinto cheiro de peixe podre, nem de merda, nem de nada disso em banana, cachorro ou gelatina. Também não sinto odores “do nada”: não aparecem cheiros malucos quando estou aqui, por exemplo, digitando.

O que eu tenho é a capacidade de sentir, em pessoas, um cheiro que outros não sentem. Certas pessoas. E é consistente a coisa. Eu sentia um cheiro insuportável em um menino adolescente. Nunca consegui descrever direito o cheiro, mas o mais próximo que cheguei foi uma mistura de cominho com buceta. Esquisito, mas era isso. O garoto era filho de um cara com quem tive uma relação – melhor não especificar, coitado do garoto. Existiam coisas no garoto que me incomodavam muito, particularmente a mentira. Era uma necessidade dele, mas o comportamento manipulativo foi altamente prejudicial a mim. Só que o cheiro veio antes…

Esse foi o único caso de cominho com buceta. O mais comum é o que chamo de cheiro de “alho podre”. Alguém já cheirou alho podre? Eu não, mas por analogia cheguei a isso.

De novo: o cheiro é consistente. Dois casos ilustrativos: o primeiro foi durante uma reunião importante de uma grande sociedade científica. Eu fui chamada para dar minha opinião e assessoria técnica numa pesquisa. Tudo ia bem quando, de repente, senti um insuportável cheiro desagradável – o tal alho podre. Todos notaram que fiquei um pouco branca, minha cabeça doeu e eu parei de falar. “Está tudo bem?”, perguntaram. Eu disse que me sentia meio mal e perguntei se por acaso alguém não poderia ter esquecido alguma comida pela sala ou perto dela, comida apodrecida. Todos se levantaram e começaram a procurar. Nada. Então perguntei se estávamos perto da lanchonete, recebendo vapores da cozinha. Também não. Então o cheiro aumentou a ponto de me dar engulhos. Foi só então que observei que esse tempo todo havia um cara de seus 25 anos na porta da sala, há uns três metros de mim. Ele se aproximou e se sentou do meu lado. Quase vomitei. Me trouxeram Sprite, que eu tomei rapidamente, mas não adiantou.

Dei uma afastada, tentei focar na reunião e aí fui entendendo: o rapaz era um estudante de alguém ali e tinha feito o processamento que eu fui chamada para analisar. Todo errado, cheio de furos metodológicos e de chutes feios. Não só por incompetência: ele se aproveitou da ignorância dos outros profissionais quanto a esse tipo de metodologia para enfiar uma pesquisa rápida e onde ele pudesse se projetar. Ele entendeu que minha presença ali ameaçava a estratégia dele.

Nunca mais voltei a esse grupo – dei uma desculpa e ficou por isso mesmo.

Segundo caso ilustrativo: um amigo do meu ex-marido. Dizer que é um intelectual relativamente conhecido não compromete o anonimato, já que muitos são. Fui apresentada a ele e nos beijinhos de apresentação senti o tal cheiro podre de alho. Ao longo da noite fui percebendo que o sujeito tem tudo que eu rejeito e desprezo: é oportunista, machista ao extremo, arrogante, usa os colegas para se projetar, não tem escrúpulo nenhum em prejudicar quem for, é puxa-saco (do meu ex-marido, por exemplo, que é uma vaca sagrada) e, finalmente, tem aquele nojento discurso pasteurizado de esquerda velha que só enlameia o verdadeiro espírito missionário pelo justiça social. Enfim: um canalha escroto modelo “Standard”.

Esses dois casos são legais porque o cheiro veio antes do julgamento do caráter. Já outros podem ser considerados viciados: costumo não gostar do cheiro de quem já se apresenta com estas características. Toda vez que desprezei meu olfato, sentindo um cheiro desagradável mas racionalmente me dizendo que o sujeito ou sujeita eram gente boa, dancei: o julgamento estava errado, o olfato estava certo.

Quando perdi tesão por algum namorado (que em geral não tinha se tornado namorado por paixão, e sim por algum motivo emocional idiota, como gratidão), o primeiro sinal era não suportar o cheiro do cara. Vontade de vomitar.

E o oposto? Também funciona?

Sim, funciona. Quando a Mel era bebê, o cheiro meio azedinho, meio adocicado dela me dava água na boca e às vezes eu mordia levemente os bracinhos dela. Era algo do bem, me fazia ter vontade de segurá-la e não devolver ao berço. Me dava paz.

Homens por quem tive muito tesão, reações animalescas e recíprocas de desejo, tinham cheiros que por si só me faziam salivar e ficar molhada.

Gosto do cheiro dos meus irmãos, que muitas vezes fica grudado nas roupas deles (os três têm “roupas favoritas”, dessas que se usa até apodrecer e acho que guardam até a forma do corpo do dono). Gosto do cheiro das minhas melhores amigas e amigos. Sinto quando as beijo, nos cabelos e pele do pescoço e rosto.

Mas o mais bizarro é que o cheiro do homem com quem me relaciono hoje não me causa só desejo: normaliza minhas funções cerebrais. Depois de semanas insone, já em doses altas de benzodiazepínico sem sucesso em garantir horas seguidas de sono, ele me deu sua camiseta molhada de treino. Desde então, tenho dormido oito lindas horas seguidas, sem interrupção – esse padrão é completamente atípico na minha vida, onde a insônia é minha lembrança mais antiga da primeira infância. Tentei com outras situações: ansiedade. Cheirei a camiseta e a respiração se normalizou.

As duas semanas que assustaram amigos e familiares, nas quais não dormi, fiquei sociofóbica, me retraí, senti cheiros em pessoas e alguma confusão mental aparentemente terminaram. A vida tem voltado ao normal.

Nada do que eu contei se encaixa nas descrições clínicas de phantosmia ou mesmo de troposmia. É, sim, uma disosmia, mas uma completamente atípica.

Já ouvi de tudo, principalmente que o que eu tenho é uma habilidade de “outra natureza”, que cai no grande saco de gatos das “capacidades espirituais”. Já me disseram que eu tenho o dom de cheirar o mal e o bem. Nem sei se acredito em bem e mal, quanto mais que possam ser cheirados.

Depois de tudo que vivi e passei, aprendi a ter uma outra atitude, parecida com esse artigo: começa com uma revisão da literatura científica, para ver o que se sabe “oficialmente”. Só depois, separando o conhecido, passo a refletir e delimitar o desconhecido.

Está aí: eis aí um desconhecido. Não devo ser a única a tê-lo e espero que ajude outros “freaks”. Afinal, “freaks” unidos podem até não ser invencíveis, mas pelo menos sobrevivem juntos!

 

Marilia

 

Referências bibliográficas

 

Gordon M. Shepherd. Unsolved Mystery – The Human Sense of Smell: Are We Better Than We Think? PLoS Biology | http://biology.plosjournals.org . May 2004 | Volume 2 | Issue 5 | Page 0572

 

Leopold D. Distortion of olfactory perception: diagnosis and treatment. Chem Senses. 2002 Sep;27(7):611-5.

 

Reden J, Maroldt H, Fritz A, Zahnert T, Hummel T. A study on the prognostic significance of qualitative olfactory dysfunction. Eur Arch Otorhinolaryngol. 2007 Feb;264(2):139-44. Epub 2006 Sep 28.

 

 

 

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