Cinqüenta: uns balanços – escolhendo as batalhas – 3

Uma das coisas de que eu tenho mais orgulho é minha vitória, nesse round, contra a culpa. Fala sério: quantas pessoas da minha geração podem reivindicar essa revanche sobre nosso principal algoz, hein? Hein? Um brinde a mim.

Essa vitória também faz parte da “encarnação cinqüenta”.

A verdade é que boa parte dos militantes de esquerda de classe média (entre os quais me incluo, claro) o é motivado por um coquetel de emoções, suposições e valores entre as quais a culpa predomina. Dói, né? E como a hipocrisia é a cor dominante das culturas intelectuais brasileiras, quase não há bibliografia sobre o tema em português. O material ao final do texto está em inglês.

A culpa vem de vários lugares. Para começar, nascemos culpados. Afinal, entender-se como filho da classe média, ou, pior, de classe média alta educada, elite simbólica bourdieuana, pode causar uma culpa desgraçada. O antídoto, como para quase tudo, é a razão. A desigualdade social não foi causada e nem é ativamente defendida por mim. Por que cargas d’água eu teria culpa por fazer parte de um segmento privilegiado? Culpa, por definição, é a responsabilidade por DOLO – dano causado intencionalmente. Minha existência não causa dano e nem tem intenção de causá-lo – não poderia estar mais distante de qualquer culpa.

Então, de onde vem esse sentimento que nos corrói a alma? A resposta fácil é “do pai  e da mãe”. A politicamente rasa é “das instituições”. A verdade é que é bem mais complicado. A culpa é multi-fatorial. Sim, parte dela vem de casa. Parte vem da rua. O que importa é que quando a gente chega jovenzinho cheio de boas intenções e ingenuidade às portas da grande biblioteca da vida, torna-se presa fácil para qualquer oportunista. A gente pode ter resistência zero e tornar-se militante de um grupelho, perdendo quase todo o espaço privado da própria vida, ou pode apenas ir topando causas e mais causas porque “é o certo”.

Em nenhum momento a gente para e pensa o óbvio: se os desajustes que geram desigualdade, violência, injustiça e tudo mais que precisa ser transformado são estruturais, então focos para “causas” são potencialmente infinitos. Como vai ser: quem apertar mais leva nosso tempo, grana, identidade, energia e alegria? Foi assim comigo por quase cinqüenta anos.

Até que, finalmente, a obviedade de três enunciados se tornou ridiculamente clara:

  1. A ordem das coisas na sociedade / na ciência / no esporte / (preencha com o que quiser) está errada (é injusta)
  2. Não fui eu que causei o erro, ou seja, não é minha culpa
  3. Não tenho obrigação em corrigi-lo, ou seja, militar não é minha obrigação: é opção

Lembrei de mim mesma, com um bebê pequeno, mesmo depois de me libertar dos grupelhos de ultra-esquerda (que são, na verdade, de direita), em casa com sindicalistas aparecendo com alguma novidade: “Fulano foi preso no piquete, você TEM que escrever um documento”. Ora, tenho nada! Nem tenho que ouvir esse papo. Fulano foi preso no piquete e, aposto, no mesmo momento, centenas de milhares de meninas foram estupradas, homens mais velhos e pobres agonizaram mortes horrorosas por câncer de próstata por causa de políticas de saúde excludentes, psicóticos institucionalizados foram amarrados e drogados contra a vontade, cães foram esfolados, animais de carga foram torturados e bebês jogados no lixo. Merecem muito mais minha atenção do que o militante do piquete.

Só que eu não dizia nada disso. Me calava e escrevia o documento. Afinal, eu sou de classe média alta; afinal, eu tive uma educação privilegiada; afinal, eu escrevo bem.

Isso foi longe. Quando eu descobri o powerlifting e ganhei uma prorrogação no prazo de validade da vida, uma das primeiras coisas que aconteceu foi gente me confrontar com a terrível verdade: “o esporte é dominado por corruptos e oportunistas, você TEM que fazer alguma coisa”. Pois é, só consegui dizer que NÃO, NÃO TENHO que fazer nada depois de uma criatura de livrinho, de tão tosca, ameaçar me bater. Era um homem imbecil, imenso, machista, provinciano e semi-analfabeto – um tal de Miudinho (olha só o apelido do sujeito…).

Sim, é verdade, o esporte é praticamente dominado só por oportunistas, corruptos, bandidinhos e gente inescrupulosa. E daí? Dane-se! Não é culpa minha, não é problema meu e eu não tenho a menor responsabilidade em mudar isso.

É fácil para mim, que tenho condições de virar as costas e competir fora do Brasil? É, é verdade. E daí, volto para a armadilha da culpa por ser “privilegiada”?

Eu, hein.

Essa deixou de ser uma batalha.

Inúmeras outras deixaram também. Corruptos sobem parede e se balançam no lustre e eu ignoro olimpicamente (perdão pelo trocadilho).

De repente, uso toda a violência contra a Confederação Brasileira de Levantamento de Peso. Por que? Voltei a ser a palmatória do mundo, corrigindo as arbitrariedades de dirigentes patéticos? Não! É que eles tentaram (de maneira meio ingênua e boba) criar uma reserva de mercado no ensino do esporte, afetando parceiros meus e, portanto, indiretamente, o meu bolso. Eu fiz contra a CBLP o mesmo que fiz contra as Lojas Americanas quando se apropriaram indevidamente do meu dinheiro: porrada neles. Sem emoção e sem encanação.

E as grandes causas, alguma vale a pena ainda? Claro que sim. Só que quais são e como é minha atuação para exercer ação transformadora, quem decide sou eu.  Não aceito sugestões, não negocio e não discuto.

 

Uns textos interessantes:

Give up Activism

http://www.eco-action.org/dod/no9/activism.htm

Because you can’t care about everything: Activist burnout, guilt and love

http://considertheteacosy.wordpress.com/2012/11/09/because-you-cant-care-about-everything-activist-burnout-guilt-and-love/

Guilt-Driven Political Activism Cannot Win

http://spritzlerj.blogspot.com.br/2006/06/guilt-driven-political-activism-cannot.html

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima