Essa pergunta se imbrica, mas não é igual à “o que é bipolaridade” ou “como aparece a desordem bipolar”. Ambas são importantes, mas essa é mais prática. É a primeira pergunta que todas as pessoas aflitas me fazem. O que importa, realmente, se a desordem bipolar esteja associada a 64 genes distribuídos em 18 cromossomas? Que não sei quantos receptores de serotonina estejam envolvidos? Que a negligência de sua mãe quando seu irmãozinho nasceu tenha deflagrado esquisitisses na sua mente? Na prática, quando o sujeito está em pânico, esperando um alien explodir de seu umbigo, o que ele quer saber é se ele é ou não é bipolar – seja lá o que isso for.
A resposta curta é: “você é diferente – BEM diferente”. Caetano Veloso disse uma vez que de perto ninguém é normal, prenhe de razão. Mas o bipolar é um pouco menos normal do que o resto da anormalidade geral. Por exemplo: ninguém tem um humor estritamente estável. Todos têm seus momentos de euforia, de alegria infantil e quase incontida, e seus momentos de tristeza. Até mesmo momentos depressivos, que duram pouco e depois passam. E todos têm isso várias vezes durante a vida, de modo que nosso humor poderia ser representado por uma função cuja expressão gráfica fosse uma seqüência de senóides, ou ondas, em torno de um eixo nunca mantido de “normalidade”. Ninguém está normal: está sempre um pouco acima ou um pouco abaixo – essa é a idéia. O problema é quando, em vez de ondas, existem tsunamis de agitação ou euforia ou Grand Canions de depressão. Aí a coisa já se torna digna de um olhar mais atento quanto a uma “condição”, algo que é constitutivo do sujeito e é bem diferente do resto da população.
Um outro nome para essas variações de humor é CICLOTIMIA. Hoje a ciclotimia está no “continuum” da bipolaridade, considerada uma forma mais branda da mesma doença. Quando, por mais de dois anos, o paciente oscila entre um humor depressivo (mas não tanto…) e um humor eufórico (mas não tanto… ), ele é um ciclotímico. Entre a ciclotimia e a desordem bipolar tipo 1, onde ocorrem até mesmo surtos dissociativos dentro dos ciclos de mania e os ciclos depressivos podem levar a inércia total, existe a desordem bipolar tipo 2.
Minha opinião, baseada na ampla convivência com portadores e discussões com psiquiatras sérios, é que isso é uma grande BOBAGEM. Como eu sempre repito, existem tantas bipolaridades quanto existem bipolares. Inventar “tipos” (agora tem até tipo 5) e outros nomes é, do ponto de vista epistemológico, tosco. Não há nenhum fundamento fisiológico, genético, bioquímico ou epidemiológico para estas classificações e elas não ajudam em nada o tratamento.
Os critérios diagnósticos se encontram no ultrapassado Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou no International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems 10th Revision (ICD-10).
De tudo, a única coisa que importa é que existe esse enorme guarda-chuva conceitual, que por enquanto vamos continuar chamando de condição bipolar, onde o portador administra períodos em que sua percepção do mundo é contaminada por emoções muito intensas no sentido estimulatório, ou no sentido inibitório. No sentido estimulatório, euforia é só uma delas (a base do conceito já meio roto de mania), mas “agitação”, “angústia”, ansiedade também estão, desde que mobilizem o indivíduo. De toda a minha observação, o maior perigo e risco é o grau de mobilização que cada ciclo, ou a passagem de um para o outro, traz. Estados extremos de euforia podem mobilizar um bipolar a gastar uma quantidade enorme de recursos a crédito, na confiança de que pode gerar mais recursos com sua energia produtiva. O resultado é um catastrófico endividamento. Estados extremos de agitação podem levar a agressão – a outros ou a si mesmo.
No sentido inibitório, basicamente o que o portador sofre são formas variadas de depressão.
Mas o que mais caracteriza o bipolar e dificulta a comunicação de seu sofrimento para os “normais” (muitas vezes o médico que lhe atende), é a estranhíssima sensação de que estados completamente contraditórios estão co-ocorrendo. Mas de fato estão: o portador está, ao mesmo tempo, ansioso e deprimido, agitado e drenado, compulsivo e inerte. Estes estados são os estados MISTOS e os estados de CICLAGEM RÁPIDA. Acreditava-se que eram típicos da passagem de um estado deprimido para um maníaco ou o contrário. Não há base epidemiológica para essa afirmação. Kay Jamison associou a maior produtividade artística dos indivíduos estudados em seu livro Touched with Fire com este estagio, considerando que é a passagem de um estágio basicamente improdutivo para outro também improdutivo, que gera os surtos de produtividade. Se a “teoria da transição” – em que os estados mistos são considerados a passagem de um ciclo a outro – for melhor fundamentada, é possível. Eu não aposto minhas fichas nela.
Aqui embaixo estão reproduzidos os sintomas “oficiais” dos ciclos de mania e depressão segundo o NIH. Por enquanto acredito que seja a lista de maior autoridade para a medicina, por isso a escolhi para esta reflexão:
Sinais e sintomas de mania (ou um “episódio maníaco”):
– energia, atividade aumentada, inquietude
– humor excessivamente “high”, bom, eufórico
– extrema irritabilidade
– pensamentos rápidos, falar muito depressa, pular de uma idéia para outra
– dificuldade de concentração
– pouca necessidade de sono
– crenças não realistas nas próprias habilidades e poderes
– mau julgamento
– surtos de gasto de dinheiro
– um período relativamente duradouro de um comportamento diferente do usual
– aumento da libido
– abuso de drogas, particularmente cocaína, álcool e medicação para dormir
– comportamento provocativo, intrusivo ou agressivo
– negação de que haja algo errado com a própria pessoa
Sinais e sintomas de depressão (ou um “episódio depressivo”)
– um humor triste, ansioso ou vazio duradouro
– sentimentos de desesperança ou pessimismo
– sentimentos de culpa, de falta de valor ou abandono
– perda de interesse ou prazer em atividades que antes apreciava, incluindo sexo
– menor energia, um sentimento de fadiga e de estar sendo “desacelerado”
– dificuldade em concentrar-se, lembrar-se e tomar decisões
– inquietude ou irritabilidade
– dormir demais ou de menos
– mudanças no apetite e/ou perda ou ganho não intencional de peso
– dor crônica ou outro sintoma corporal persistente que não causado por doença ou lesão
– pensamentos sobre morte e suicídio, ou tentativas de suicídio
Nossa, que bagunça. Vamos tentar colocar alguma ordem nesses itens jogados sem nenhuma hierarquia para que o leitor não fique fazendo teste de múltipla escolha com algo tão sério. As duas listas acima descrevem elementos de duas condições opostas (e, surpreendentemente, alguns elementos comportamentais são comuns aos dois): uma muito acelerada, ou estimulada, e a outra muito desacelerada, ou inibida.
Como saber se essas manifestações, no geral todas componentes da vida de um humano pseudo-normal (nenhum o é), já fazem parte de uma condição bipolar? Primeiro, quando a(s) manifestação(ões) torna a vida DISFUNCIONAL. Isso é o básico. Se algum comportamento involuntário, incontrolável, desproporcional quanto às supostas causas externas (e qualquer um percebe quando algo aparentemente não tem motivo para acontecer) faz com que práticas da vida cotidiana sejam comprometidas, é a hora de parar e analisar a situação. Está atrapalhando a vida social? O trabalho? O estudo? A vida em si?? Essa é a primeira pergunta, e, se a resposta for positiva, não importa que tenha durado duas semanas ou um ano, se é um ou cinco dos itens da listinha do NIH (que poderia ser de 32, 46 ou 85 itens) – o indivíduo é portador de alguma coisa que não está boa e precisa ser tratada. Segundo: se as ideações suicidas, estes pequenos devaneios que em geral não levamos a sério sobre como seria bom se tudo acabasse, se aquele caminhão azul batesse em nosso carro e morrêssemos sem sofrimento, se um meteoro caísse agora em nossa cabeça, forem muito recorrentes, é outro mal-sinal. Se isso for combinado a comportamentos auto-destrutivos (e isso é um enorme e complexo capítulo à parte), então há definitivamente algo errado.
A gravidade da condição bipolar está diretamente relacionada a dois elementos, nesta ordem: o quão sério realmente é o risco de suicídio e o quanto as manifestações (quaisquer) estão comprometendo o funcionamento cotidiano.
A segunda não é muito difícil de medir. Até um amigo educado pode ajudar a fazer um levantamento e um médico que não esteja com o relógio medindo cifrões, e sim horas e minutos, também. Já o primeiro – o risco de suicídio – é bem mais complicado.
Só teremos certeza mesmo sobre o risco de suicídio através de comportamentos de alto risco, e aí pode ser tarde demais. Uma tentativa séria de suicídio é suficiente para o indivíduo ser considerado de altíssimo risco, e aí a opção é entre tratar-se e uma nova e inevitável tentativa, com grandes chances de sucesso.
Em outro capítulo, vamos discutir uma desordem bastante controvertida, que já se cogitou ser relacionada à bipolar, que se chama Borderline Personality Disorder. Em geral, quando o psiquiatra não vai com a sua cara, esse é o seu diagnóstico e quase sempre está errado. Assim, muitos bipolares com compulsão por auto-mutilação entram nessa categoria e suas freqüentes lesões auto-inflingidas são ignoradas por médicos e família. Até que um dia se matam. “Nossa!!! Que surpresa!!!” Ora, ele era um bipolar! O suicídio estava na agenda dele! Surpresa, nada – erro médico, mesmo.
Eu tive um “encontro” desses. Todos os médicos exceto um me diagnosticaram como portadora de desordem bipolar. Esse um era um acadêmico, e estava muito irritado com minha reação de denúncia pública à falta de ética num concurso da USP. Então eu virei borderline para ele e ele me enfiou Zyprexa. É uma forma médica de dizer: “odeio você e vou torturará-la”. Ele olhou minhas centenas de marcas de auto-mutilação, algumas das quais com muitos pontos, e disse: “borderlines fazem mil risquinhos no pescoço, mas jamais terão coragem para abrir a jugular” (até hoje me pergunto como ele ignorou os enormes cortes com mais de 10 pontos que eu tinha pelo corpo). Bem, ele pagou a boca (embora não saiba e eu não vá revelar seu nome aqui – é um neurologista conhecido e prestigiado da USP): três anos mais tarde, eu abri a jugular numa estrada deserta no litoral, e sobrevivi por milagre. Puxa, que chato… Diagnóstico errado: a moça não era Border, era bipolar no duro. Tudo bem, próximo paciente.
Então, calma com as listinhas de supermercado dos órgãos de saúde. “Risquinhos” podem ser manifestações de mil coisas, até mesmo de rituais de culturas urbanas bizarras. Mas nunca devem ser ignorados. No contexto, podem sim, e muito, ser parte de um quadro bipolar e aí, todo cuidado é pouco. É sinal de que aquele portador está lidando com compulsões auto-destrutivas bastante poderosas e que corre risco real.
Com isso, fecho este capítulo e num outro falo sobre ferramentas para o bipolar se auto-monitorar.
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – http://dsmivtr.org/
International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems 10th Revision (ICD-10)
National Institute of Mental Health. A detailed booklet that describes Bipolar Disorder symptoms, causes, and treatments, with information on getting help and coping. (2001) with addendum 2007. Bethesda (MD): National Institute of Mental Health, National Institutes of Health, US Department of Health and Human Services; January 2007. . (NIH Publication No 3679). Availability http://www.nimh.nih.gov/publicat/index.cfm.