Esporte: multi, trans e inter-disciplinaridade – um recado para a ABRACE

Fui convidada daquela maneira coletiva com que todos os profissionais fomos a participar “lato sensu” da ABRACE – Associação Brasileira de Ciências do Esporte.

Deixei lá atrás uma primeira resposta de felicitações, porém indagando sobre a ausência, na própria constituição do objeto desta entidade, das dimensões sociais, culturais, histórica e psicológica do esporte. Pelo menos os primeiros textos deixavam cristalinamente claro que o objetivo era integrar a medicina esportiva, nutrição esportiva, fisiologia esportiva, fisioterapia, educação física e nada mais. Não tive resposta.

Meu comentário tem uma perspectiva metodológica e outra política.

Vamos à metodológica primeiro. Como obviamente tudo é interfaceado, a primeira coisa é me qualificar como interlocutor neste diálogo. Afinal, vocês têm direito e saber quem é esta pessoa que fala com vocês: minha formação em graduação é em biologia e química, meu mestrado em bioquímica e ecologia química e meu doutorado em sociologia da ciência – todos na Universidade de São Paulo. Meu pos-doc foi na Virginia Tech, em “science studies” (ou social studies of science). Depois disso fui professora da Universidade da Florida em política científica e tecnológica, com foco nas ciências da vida, no Centro de Estudos Latinoamericanos. Finalmente, migrei para as ciências do esporte, onde publiquei muitos artigos, dois livros e onde me associei, agora, ao Laboratório de Psico-sociologia do esporte.

A cereja deste bolo subjetivo é que eu também sou atleta de alto rendimento em levantamento de peso, mais especificamente a única recordista mundial de todas as federações que o país já teve (ou seja: eu já estive de todos os lados desta conversa).

Um dos temas sobre os quais publiquei e ensinei bastante diz respeito a tais cruzamentos conceituais e metodológicos ao longo da história das ciências, que hoje recebem nomes como inter, trans e multi-disciplinaridade. Nem sempre foi assim. No passado não tão remoto, estes cruzamentos não eram bem-vindos. No entanto, tão importante foram que deram origem a novas ciências. A biologia molecular nasceu de um tal cruzamento, quando Delbruck, um físico não aceito na genética tradicional da Cal Tech, inaugurou de maneira espetacular o que conhecemos hoje como biologia molecular, através do famoso “phage group”.

Hoje, depois de muito se discutir sobre os novos modos de produção de conhecimento (aproveitem e leiam, o livro está na íntegra), sabemos que nas últimas décadas houve uma migração tanto institucional como propriamente epistemológica no mesmo em direção a sistemas mais difusos, “problem oriented” e, portanto, pouco obsessivos quanto a fronteiras disciplinares ou ao status científico de cada componente de sua construção.

O esporte é um caso quase que paradigmático, “de livrinho”. Não há como sequer configurar um problema no esporte sem o aporte de diferentes disciplinas. O problema é essa carência metodológica brasileira que faz com que parte dos praticantes de um grupo de disciplinas sequer enxergue a cientificidade do outro. No caso, os praticantes das ciências biológicas ligadas ao esporte (medicina, nutrição, fisioterapia e educação física) em relação aos das ciências sociais, humanas e psicologia.

O resultado disso são enunciados que beiram o ridículo, pois não conseguem entender que certos fenômenos são socialmente construídos e é fútil um fisiologista tentar normatizar e impor critérios sobre os mesmos.  Atletas de esportes por categoria de peso submetem-se a regimes potencialmente perigosos de “cutting weight”. Verdade. Vem um fisiologista e “propõe” que se mude o horário para 10 minutos antes da luta ou levantamento. Ora, senhores, faltou cursar antropologia 202 e psicologia I na graduação. Não estamos falando de Leishmania donovani, e sim da PESSOA atleta. Antes de prescrever uma mudança de regras autoritária, que será burlada de maneira a causar muito mais dano à PESSOA atleta, é preciso consultar os colegas do outro lado do abismo disciplinar: psicólogos, antropólogos e sociólogos.

Tenho dezenas de exemplos a dar nesta linha, mas prefiro agora me dedicar ao segundo tema deste artigo: a perspectiva política. Como é que vocês pretendem obter o apoio de todos os profissionais com formação técnica e CIENTISTAS do esporte se, de saída, excluem TODAS as disciplinas das ciências sociais, humanas e psicologia da jogada? Acham mesmo que estes profissionais vão respeitar as ações de vocês?

Com todo respeito, não foi inteligente fazer isso. Minha sugestão é que se dê um passo atrás e se tente dialogar com quem pratica estas outras disciplinas e se escute o que elas têm a dizer sobre o objeto ao qual todos nós nos dedicamos: o esporte.

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