Fake: a fraude default das certificações e a punição do mérito


De volta ao tema das certificações, especializações ou atestados de formação especial em geral na área da saúde.

Ontem um colega fisioterapeuta viu os três volumes de re-edições dos livros de Joseph Pilates na minha mesa. Faz parte de um mecanismo automático do meu funcionamento profissional acessar a fonte original de informação em qualquer tema sobre o qual eu deva emitir opinião, explicar ou resumir o assunto. Porém, não é apenas uma conduta automática: é algo que acredito ser a base da boa prática profissional em qualquer campo. É a base da meritocracia – o sistema de ordenamento profissional baseado no mérito e competência. É assim que ensino meus alunos.

Quando uma determinada prática requer um conhecimento codificado há algumas gerações, é fundamental que o praticante conheça este percurso. Não é essencial que todo biólogo tenha lido a obra de Darwin. Espera-se que um especialista em biologia evolutiva, no entanto, tenha lido pelo menos trechos importantes de On The Origin of Species. Não me passaria pela cabeça perguntar a um psicoterapeuta se ele estudou conceitos de psicanálise lendo textos originais de Freud: assumo que o tenha feito.

Os livros de Pilates estavam ali na minha mesa porque devo escrever sobre tema relacionado. O colega então perguntou como obtive estas cópias, pois seriam inacessíveis. Ora, é só entrar no site da Amazon e comprar – tudo que se requer é um cartão de crédito internacional. Ele então comentou que outro colega fisioterapeuta foi aos Estados Unidos, sem nenhum conhecimento prático da língua inglesa, fez um curso rápido sobre Pilates e hoje ministra um programa ou sei lá o que num bairro abastado de São Paulo. No par de horas que se dedica a isso na semana, fatura cinco mil reais. Chocada, respondi: “nossa, deve dar vontade de queimar o diploma”. Meu colega disse que muito pelo contrário, aprovava a conduta do terceiro e que essa era a regra no nosso país.

Tive uma epifania de pessimismo agudo segundo a qual, nas áreas da saúde com práticas mais “hype”, o mundo se divide entre quem sabe a coisa, e quem ganha grana com a coisa. Sem sobreposições. Devo estar errada, claro. É bem possível que uma ínfima minoria dos que ganham grana saibam do que estão falando (e fazendo). Também é possível que uma ínfima minoria dos que se dedicam a estudar (a coisa) acabem por ganhar alguma grana com ela. Mas no geral, o que tenho visto é que a regra é a fraude.

Eu mesmsa já fui afanada um par de vezes. Sei de outros colegas que se dedicam ao lado do “know how and what” (em oposição ao “earn with, whatever it takes”) que riem da própria miséria ao admitir o número de vezes que lhes deram chapéu, lhes tomaram o método sem reconhecer a fonte, entre outras práticas igualmente nojentas do ponto de vista ético.

Então dei um google em “curso pilates” e descobri centenas de programas oferecidos por instituições rigorosamente desconhecidas, cobrando fortunas para certificar alunos em poucas semanas a “dar aula de pilates”.

É evidente que há um componente de conhecimento tácito – aquele não codificado, transmitido de praticante experiente para novato – em qualquer prática corporal. Cá para nós: quem é que pode ser ingênuo o suficiente para acreditar que estas centenas de cursos contam com “praticantes experientes”?

Outro colega relatou a situação em que uma empresa solicitou aula de tai-chi-chuan dentro do escritório. Isso mesmo: entre as mesas. Pessoas que conhecem esta arte marcial de herança, embora não origem, milenar, sabem perfeitamente que isso é impossível. Também sabem que só está capacitado a ensinar tai-chi-chuan a pessoa que tenha percorrido um programa de formação longo e seguido um rigoroso código de ética.

No entanto, segundo a opinião do colega fisioterapeuta e possivelmente da grande maioria dos profissionais da área da saúde hoje, não atender a solicitação da empresa é demonstração de ingenuidade e falta de visão comercial.

O caso do professor de Pilates fast-food e do dilema do mestre de tai-chi-chuan demonstram a trágica situação que o mercado de fitness criou para a instrução profissional de práticas corporais, terapêuticas ou não. É um vale tudo, onde a primeira vítima é a ética e a moral, a segunda é o praticante-“cliente”, submetido ao que só posso qualificar como estelionato intelectual, e a terceira é a saúde pública.

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