Meu “off” começa sábado à noite e termina domingo à tarde, no qual como uma porção de bobagens e também de coisas boas. Ontem caí de boca em dezenas de iguarias proteicas e gordurosas em companhia de meu amigo Luis, enquanto conversávamos sobre responsabilidade e consciência corporal. Fazíamos conscientemente nosso exagero semanal e especulávamos sobre formas de ajudar as pessoas vítimas de suas alienações a conquistarem pelo menos esse nível de responsabilidade – aquele sobre seu próprio corpo.
Então hoje cheguei à casa do Mauro pronta para continuar a orgia quando fui surpreendida por meu último presente de aniversário: um Jacaré do Rio. Trata-se de um Bonsai brasileiro. Gosta de sol, me explicou a Tuca. Água, mas nem tanto. Resistente. Talvez nesse aniversário ela e o Laerte tenham baixado suas expectativas quanto à minha competência para assumir responsabilidades sobre outros seres vivos e me deram um mais tosco (embora belo), pois a lindíssima e delicada orquídea do ano passado está meio moribunda.
Lembrei de um filminho B bastante melado estrelado pela Sandra Bullock chamado 28 dias. Ela era uma profissional de mídia, se não me engano, workaholic e externamente alegre, completamente drogada e irresponsável. Quando esgotou a paciência de familiares e do juiz cometendo inúmeras cagadas num porre, foi obrigada a se submeter a um tratamento de desintoxiação de 28 dias. Todos os internados eram doidos, drogados e irresponsáveis e de uma certa forma se deram suporte mútuo na recuperação. Eram todos um fracasso em qualquer tipo de relacionamento humano, como todo junkie. No último dia, quando estavam sendo “soltos para o mundo”, um deles perguntou ao terapeuta: “quando saberemos que já estamos prontos para nos relacionar com alguém?”. O terapeuta respondeu: “bem, primeiro você compra uma planta. Se ela não morrer em um ano, aí você arruma um bicho. Se ele não morrer em um ano, aí você pode tentar arrumar um namorado ou namorada.” É o protocolo da responsabilidade incremental – primeiro, sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo. Aí caminha-se pelo universo de coisas vivas, aprendendo a assumir novas responsabilidades.
Essa regra de ouro ficou na minha cabeça. Eu sou um fracasso absoluto em relacionamentos. Todos que duraram mais de duas semanas se tornaram grandes desastres. Eu era melhor nas minhas estratégias de assumir responsa sobre mim mesma, mas mesmo assim demorei um par de décadas para descobrir o melhor esquema. Aí fiquei pensando que talvez eu tenha violado o protocolo da responsabilidade incremental. Talvez eu devesse primeiro ter me entendido comigo mesma, depois arrumado umas plantas e assim por diante. Casamentos foram carros na frente de bois existenciais. Filho então! Coitada da Mel… Mas sobreviveu e… bem, agora está assistindo TV, comendo pão com patê de tomate seco.
No entanto, pode ser que ainda haja salvação: já ouvi falar de tratamentos experimentais com indivíduos com sérias desordens de desenvolvimento (vulgarmente chamados de “retardados”) que são submetidos a sessões de “retorno” a fases anteriores, talvez puladas, talvez mal vividas. Engatinham, depois caminham, e assim por diante. Quem sabe não posso fazer isso também? Quem sabe esse Jacaré do Rio não é minha chance para adotar, agora de forma sistemática e bem comportada, o protocolo da responsabilidade incremental? Afinal, é um Jacaré resistente. Verde. Forte. De casca dura e miolo também. Se eu esquecer dele por um tempo, não vai reclamar nem morrer. Sei que ficarei culpada, mas não tanto como se o resultado da minha negligência fosse machucá-lo ou matá-lo. Quem sabe depois disso até da orquídea eu consiga cuidar melhor. E talvez ser mais competente com aquele nariz esfolado do Akela, me tornar uma humana melhor para meus cães e também para o coelho da Mel. Se até nisso eu for bem sucedida, talvez eu me veja sendo melhor mãe, melhor amiga, melhor irmã e melhor filha. Minha dúvida é se, seguindo esse protocolo, eu consiguirei chegar a assumir aquela última responsabilidade que até arrepio nas costas me dá de pensar…
Mas, afinal, é tudo uma questão de consciência e responsabilidade, ou não?
Marilia