Jamais vu

Acordei hoje sem saber muito em que cama estava. Por alguns minutos, fiquei, no escuro, testando a familiaridade dos objetos. Haveria uma estante atrás da cama? Livros do lado esquerdo? Alguém do lado direito?
Essas coisas sempre me acontecem nas mudanças. Em novembro de 1996, embarquei para os Estados Unidos para meu pós-doc. Durante duas semanas, fiquei na casa da minha irmã, que então vivia em Alexandria, perto de Washington, DC. A cama ficava encostada numa parede. Depois fui para Blacksburg, onde ficava a Virginia Tech. Aluguei um apartamento muito legal perto do campus – grande, com dois quartos e perto da escola da Mel. Coloquei um colchonete no chão, perto da janela.
Saí do Brasil no calor, quase verão. Cheguei nos Estados Unidos no inverno. No caminho de DC para Blacksburg, a neve foi aparecendo. A cidade fica numa região sub-ártica, nos Apalaches. De manhã, quando eu acordava, ainda estava escuro. Por muito tempo, ficava vários segundos testando a localização de objetos e me situando no tempo e no espaço. Demora um pouco para adquirirmos a resposta automática numa nova situação. Em que país estaria? Que cama seria aquela?
Além disso, acabava de me separar do pai da Mel. Estava profundamente apaixonada por outro homem. O meu cenário interno também havia mudado. Tudo havia mudado – era outra vida, outro país, outra Marilia.
Até esse momento, em geral, as mudanças de vida vinham acompanhadas de mudanças de espaço. Não conseguia distinguir uma da outra. Achei que fosse sempre espacial a coisa.
Andar nas ruas meio vazias de Blacksburg, correr entre os pastos cheios de vacas experimentais, flocos de neve caindo no rosto, o cheiro de novidade, tudo para mim era um pacote único com nova cidade, novo país, novo amor, novos amigos.
Depois disso veio Brasília, nova universidade, novos colegas, novo marido – não o novo amor, que ficou para trás, em camas com o copo do lado esquerdo, e não direito… Cidade quente, seca, bela, muito bela. Minha cama era muito alta, pois o marceneiro não leu direito minhas medidas. Talvez por isso ou pela dificuldade que tive naquele novo contexto familiar, muitas vezes, ao acordar, confusa, ainda estendia os braços para fora da cama, com a esperança de acariciar o carpete fofo do apartamento de Blacksburg.
Passei por várias outras mudanças de vida que incluíram espaços, amores, camas e cidades.
Até que aconteceu uma grande mudança sem nenhum acompanhamento espacial. Foi quando quase morri, mas me salvei, em julho do ano passado. No dia seguinte, acordei sem saber onde estava. Todas as camas da minha vida se confundiram. Camas, amantes, copos e garrafas de água. Não, não era outra cama – era apenas outra vida. Uma vida novinha em folha, que me foi concedida por puro acidente. Acordei, apalpei em volta e aos poucos reconheci o ambiente. Mesmo assim, algo era absurdamente diferente. Me movi e entendi: a dor. Coloquei a mão no pescoço e senti os pontos, a região insensível da pele, a dificuldade em me virar. Morri? De uma certa forma, sim.
Abri a janela e o mundo me pareceu diferente. Essa sensação se chama “jamais vu” e é o oposto do “dejà vu”. Todos já tivemos “dejá vu” alguma vez: acontece sob stress ou mesmo sem razão. É quando nos deparamos com uma cena ou situação nova, mas que “reconhecemos” como lembrança. “Jamais vu” é o oposto: é uma cena que racionalmente sabemos que é familiar, mas a sensação é de novidade. Vi isso acontecer com meu amigo Fábio, que sofreu um grave acidente de moto e ficou vários dias em coma. O acidente causou um grande hematoma no cérebro. Passeando pela Higienópolis, onde ele viveu a vida toda, me contou que tudo parecia desconhecido para ele, embora ele soubesse que não era.
Bem, sobrevivi à noite de sonhos incertos de ontem. No entanto, o mundo é uma grande novidade hoje. Essa outra Marilia que acordou sem um pedaço vive um interminável “jamais vu”. Como para meu amigo acidentando, não é uma situação agradável. Na verdade é muito desconfortável. Sinto uma falta quase insuportável do que perdi.
Mas perdi, está perdido. Como há um ano perdi a sensibilidade no lado esquerdo da face, que nunca recuperei. É ruim, incomoda até hoje e acho que vai incomodar para sempre. Talvez essa falta que sinto hoje também incomode para sempre. Mas talvez, como a outra, seja um preço para um novo crescimento e esse mundo “jamais visto” seja, afinal, um mundo melhor…

Marilia


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