Mudando de lugar (ou finalmente ficando no que me pertence) – eu e o powerlifting

Vamos começar pelos “nãos”: não, eu não estou abandonando vocês. Não, de forma alguma, não estou abandonando o powerlifting. Pelo contrário: estou indo cada vez mais fundo nele.

Mas sim, estou mudando de lugar. Até agora, eu ocupei mais de um lugar, coisa que algumas pessoas tiram de letra. O lugar de atleta, o lugar de estudiosa, o lugar de treinadora e o lugar de dirigente esportiva. Os três primeiros são inteiramente compatíveis para mim e evoluíram muito, juntos. O quarto eu encerrei.

Ando soltando notinhas nesse sentido há um tempo, preparando o campo. A questão é a seguinte: eu criei e dirigi uma Entidade Nacional de Governança do Desporto, a ANF, por acidente. Eu nunca curti política esportiva. No começo, por ingenuidade, eu achava duas coisas: primeiro, que bastava ser um bom líder de projeto. Ora, isso eu tiraria de letra: coordenei inúmeros e sempre fui muito bem sucedida. Segundo, que as questões de jogo de interesse seriam contornáveis apenas com ética e que seria possível criar um ambiente alternativo sem ele.

Pois é, não é. Nenhuma das minhas premissas era verdadeira. Gerenciamento de projetos não tem nada a ver com direção política esportiva. Pelo contrário, se chocam. Era difícil para mim compreender como a planilha de tarefas de um campeonato não começava por coisas essenciais como escala de árbitros, formatação da súmula e checagem do equipamento. Nem porque o custo principal eram troféus, e não equipamento, que freqüentemente estava sem calibragem ou fora das especificações.

O powerlifting de fundo de quintal, de festa ou self-service nunca foi sequer remotamente compreensível para mim. Foram necessários cinco anos para que eu compreendesse que quem mandava nos eventos era o organizador e que a autoridade de mérito que eu ingenuamente ostentava nem era levada a sério.

Era mais incompreensível ainda explicar como funcionava o esporte durante semanas, dar um curso de arbitragem num dia e no dia seguinte ver todas as regras sendo transgredidas – bem rápido, de maneira que eu ficava tonta.

E foi aí que eu suspendi todos os campeonatos da ANF. Se não fosse para fazer powerlifting, um esporte que tem três opções de modalidade (e não mais do que três), que são powerlifting completo (agachamento, supino e terra, feitos em rounds consecutivos de até 15 levantadores), supino single-lift ou terra single-lift, então eu não autorizaria mais nada. Era chocante para mim ver pseudo-representantes internacionais “emprestando a bandeira” para qualquer simulacro do esporte, tristes caricaturas do que para mim era uma nobre arte a ser honrada até a morte.

Não: dirigir politicamente o esporte não tinha nada a ver com planilhas bem feitas, bons cronogramas e autoridade – isso eu tinha.

Um após outro, fui descobrindo que os organizadores não tinham entendido o esporte. Não creio que todos tenham feito as coisas por mau caratismo. Simplesmente nunca souberam o que era o esporte e eu não tive competência para ensiná-los ou convencê-los a ponto de mudarem os hábitos inculcados pelos coronéis brasileiros do powerlifting fake.

A crença de que apenas a honrosa bandeira da ética me daria o sucesso na guerra contra essa heresia e contra a corrupção do outro lado mostrou-se ser de uma ingenuidade patética. É necessário muito mais do que estar munido de ética: é preciso habilidades de negociação, de administração de interesses e relações entre atores sociais num campo que eu nunca realmente tinha compreendido. Finalmente, era necessário algo que eu não tenho: afastamento emocional. Não se pode tomar decisões sob efeito da indignação que essas coisas todas causam.

Eu acho que é possível, sim, cumprir essa função. Só não acho que eu possa fazê-lo. Eu não tenho as qualidades necessárias. Me falta a capacidade de ler sub-textos no discurso alheio. Se o sujeito se diz amigo do esporte, não estar interessado em ganho financeiro e nem prestígio pessoal, eu tomo estas afirmações literalmente. Jogo argumentativo, infelizmente, é algo que eu só sei analisar em condições acadêmicas. Na minha tese, por exemplo. Quando um sujeito real faz isso na minha frente, eu caio como um pato. Mesmíssima coisa com o jogo de interesses. De que me adiantaram as décadas de senioridade acadêmica e precisão metodológica na análise do tráfico de interesses se na presença deles, não soube identificar nenhum?

A verdade, amigos, é que intelectuais servem para analisar dados, interpretar, gerar modelos sobre a realidade e fornecer subsídios para tomadas de decisão. Não servem para administrar jogos de poder. Bons professores administram relações de ensino-aprendizado, que, de exercício de poder, têm muito pouco e são muito diferentes das situações concretas onde há intenção clara em burlar regras. O bom professor assume que todos estão ali com o mesmo objetivo construtivo. Eu sempre disse a meus alunos, em todas as partes do mundo, que eu ficaria chocadíssima com a transgressão das normas éticas da produção acadêmica. Um plágio, por exemplo, seria motivo de reprovação automática e denúncia para a reitoria. Nunca tive que lidar com isso, em décadas de ensino.

Eu tenho um outro motivo para me desligar destas funções: eu as detesto. Como eu disse, a ANF veio para a minha mão acidentalmente. Mesmo as funções que assumi no Strongman, poucas, vieram sem que eu de fato as escolhesse. NADA da organização me interessa – aliás, me angustia, me entristece, me tira o tesão pela vida. Se eu tiver que pensar em premiação acho que abandono o esporte. Eu sou contra premiação. Imaginem o que causa em mim ter que pensar em comprar troféus, quando eu sou ideologicamente contra eles. Eu dou os meus! Me deixa um pouco perplexa também pensar em passar três horas no telefone discutindo com gerentes de madeireiras. Ora… há coisas que só eu tenho capacitação para fazer no país e no mundo. Comprar madeira é algo bem fácil, chatérrimo, mas que alguém com segundo grau completo faz numa boa com uma lista de funções na mão.

Perdão, mas a famosa culpa não me pega mais. Entendo que o esporte tenha problemas. O país tem problemas. Nem por isso, vou me deixar chantagear pela falsa necessidade de que eu tome providências: não tenho que tomar providência alguma. Essa foi a mesma lógica que anos antes me colocou na militância de esquerda, onde minha vida foi estraçalhada. Nenhuma das coisas que eu fiz sob sentimento de culpa cumpriu objetivos positivos. Só estragou minha vida e ajudou meia dúzia de oportunistas. Assim, decidi que pela via da obrigação e da culpa, não vou mais contribuir.

Em resumo, como dirigente esportiva, eu fui uma ótima professora. Sarcasmo a parte, acredito que fiz o máximo que foi possível: apontar a possibilidade de reagir contra um sistema institucional que profana a pureza da nossa arte. E pronto.

Dirigir qualquer coisa – uma entidade, um campeonato, uma coalizão – não é comigo. Não tenho qualificação para isso. Na minha mão, vai morrer.

Assim, tomei a decisão de passar todos os cargos e funções administrativas de tudo que se refira a qualquer esporte em que eu esteja envolvida para outros. Livre desta atribuição de algo que eu faço tão mal, poderei me dedicar a fazer o que faço bem: elaborar projetos, auxiliar em questões técnicas e continuar alimentando a reflexão sobre a ética, a natureza do esporte, seu aprimoramento técnico e seu papel social. O prazo para que todos se organizem para essa minha mudança de lugar é Março de 2013.

Mesmo admitindo a minha incompetência, tenho consciência de que a tarefa não será fácil para vocês, que vão ter que assumir as funções que eu deixo. O que posso alertar é que a única defesa que tem uma entidade que se proponha realmente a ser uma alternativa ética e de procedimento é não expor cabeças. Ajam sempre como GRUPO. Quem quer que assuma a presidência precisa ser blindado de assédio. Os que assumirem funções dirigentes devem levar todas as questões para fórum coletivo. Chaveco e intriguinha paralela vão acontecer sempre e DESTROEM qualquer projeto sério.

Nunca estive tão em paz como agora, com essa decisão tomada. Há anos não me sinto tão feliz. Deixo claro que competirei fora do Brasil onde eu bem entender, onde me for mais conveniente e onde as regras sejam respeitadas. Não tenho fidelidade a siglas. Não tenho necessidade de competir aqui e, além disso, em geral o calor é excessivo para mim neste continente. Alcancei um nível de performance que me dá conforto em qualquer ambiente de alto nível. Afinal, quebrei um recorde histórico mundial open e minhas marcas são próximas ao pico da categoria de peso em qualquer federação. Eu cuido de mim. Eu acho que alcancei o direito de fazer isso, e só isso.

Já cuidei bastante de interesses alheios, já dei muito do meu tempo, do meu dinheiro, da minha energia e do meu desgaste.

Agradeço o apoio que tenho recebido dos amigos para essa decisão e re-afirmo que podem contar comigo para esse lugar: o de pensadora, professora, elemento técnico.

Se alguém me pedir para verificar o preço dos gradis, anotar inscrições, cuidar da organização do churrasco de confraternização ou me pedir para dar “uma força” para qualquer coisa num dia em que eu queira assistir TV, eu posso me tornar desagradável. Se me pedirem para mediar qualquer negociação, eu posso desaparecer, igualzinho o Cheshire Cat. Procurem no Google.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima