O dilema do Strongman brasileiro: Esporte-show ou Show-fingindo-ser-esporte?

Este sábado foi realizado o Desafio da Força Humana em Caxias do Sul. O organizador foi Vilmar Oliveira, a quem eu apoiei e cuja trajetória de décadas como pioneiro dos esportes de força eu conheço e admiro.

Infelizmente, fatos envolvendo a interpretação de regras, procedimentos e acontecimentos levaram à premiação de atletas sem o consenso de mérito que seria desejável.

Não sejamos ingênuos: em todo esporte do mundo ocorrem situações em que a arbitragem gera descontentamento. “Juiz ladrão” é uma frase conhecida em jogos de todo tipo. No entanto, o “juiz ladrão” pode se justificar, a posteriori, alegando uma interpretação x ou y de um livro de regras que ele obrigatoriamente conhece.

O livro de regras que cada Órgão Governante (Governing Body ou Sanctioning Body), ou Entidade de Governança do Desporto adota é a Constituição daquele pequeno país ou mesmo o Estatuto da Gafieira. Sem ele, impera o vale tudo (não falemos em anarquia, pois anarquia é algo benigno e utópico, que supostamente ocorrerá quando todos estiverem de acordo e o poder e a hierarquia não sejam mais necessários). O problema do vale tudo é que, sem regras codificadas, escritas e acordadas, o que determina o resultado das ações é o poder, a violência, a manipulação, ou seja, a capacidade de cada um de fazer valer seus interesses, independente de um consenso sobre o que seja correto e justo.

Isso descaracteriza o princípio do Esporte, que é o jogo institucionalizado. A natureza do esporte é ser um jogo onde as regras, antes relativamente frouxas, se cristalizam num documento cuja aplicação é garantida por uma estrutura institucional.

Em geral, esta estrutura são as federações. Em esportes não olímpicos, há muitas federações. Cada uma delas, no entanto, deve ter seu livro de regras, ou Constituição. Quem compete em campeonatos organizados por elas, o faz sabendo que será julgado segundo este código.

O Strongman não possui federação internacional e nem nacional. Vários organismos podem assumir responsabilidade pelos eventos de Strongman, mas nenhum realmente é um Órgão de Governança.

No entanto, por organizar há muitos anos este esporte, entidades como a American Strongman já tem procedimentos padronizados. Mesmo sem um livro de regras publicado e votado em assembléia, ela tem códigos claros. Os atletas se sentem tranqüilos e à vontade para competir, sabendo sob que critérios serão julgados.

Os acontecimentos de Caxias do Sul, os quais eu não presenciei, geraram revolta em participantes. A senhora Unami divulgou uma nota de desagravo contra a organização do evento (https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=307211099342989&id=100001623043783 ).

Pela nota, não consegui entender exatamente o que aconteceu, coisa, aliás, esperada na ausência de códigos claros, explícitos e procedimentos pré-acordados.

Vejo agora o Sr. Marcos Morais se defendendo de ataques dos quais eu não tenho conhecimento, mas tenho certeza que ocorreram, pois outra característica destas situações é o diz-que-me-diz e o conflito surdo.

Um atleta que admiro muitíssimo e a quem eu incentivei desde o começo a participar de eventos de Strongman, Rafael Crestani, foi vítima da confusão, sendo classificado de uma maneira, segundo o entendimento da senhora Unami (e não só dela), e de outra maneira, segundo o resultado final, criticado por várias pessoas.

Fico triste, pois isso pode erodir o entusiasmo deste, que considero um dos maiores talentos que os esportes de força no Brasil já viram surgir. Na minha relação de amizade e também cumprindo meu papel de senioridade nos esportes de Força, vou continuar estimulando o Rafael.

Também não gosto da idéia de que o organizador seja crucificado, mesmo que tenha errado. Fato semelhante ocorreu no campeonato organizado em Peruibe, onde eu fui uma das árbitras e tomei uma decisão que, a posteriori, considerei equivocada. Refleti bastante e conclui que minha decisão equivocada se deu pela ausência de procedimentos claros e codificados, bem como de uma interpretação também codificada dos mesmos e de elementos de organização que permitissem ao árbitro um controle de todos os acontecimentos durante o campeonato.

Nenhum árbitro consegue julgar com regras que não possuem suficiência explicativa, que não prevêem situações desviantes e que não legislam sobre as mesmas. Nenhum árbitro consegue julgar se não há uma organização do cenário que permita que ele e/ou os demais árbitros testemunhem todos os fatos relevantes ao julgamento.

Assim, a única solução que eu vejo para que não ocorram mais os indesejados conflitos que se agudizaram após o campeonato de Caxias, mas já estavam latentes nos anteriores, é a elaboração de um Código de Procedimentos. Não importa o nome que demos a ele, mas é importante que exista. Pelo menos um – podem existir vários. Mas têm que existir.

Eu, pessoalmente, fujo de ambientes onde imperam elementos estranhos ao tablado, pista ou arena. Onde, como eu sempre digo, o jogo é ganho fora do tablado. Todo atleta gosta de competir com segurança e tranqüilidade, sabendo que será julgado de maneira imparcial, clara e inequívoca.

O atleta ético nem mesmo gosta de vencer se não tem certeza de que sua vitória foi realmente justa.

Apelo, assim, à comunidade praticante e apreciadora do Strongman, que reflita sobre minha proposta e, concordando com ela, se ponha a trabalhar para a produção de um ou mais Códigos de Procedimento.

Apelo também a todos para que tenham sensibilidade para situações específicas e tenham a grandeza de compreender que qualquer vitória não consensual é uma derrota para o esporte.

O Strongman é um esporte, como diferente de outros, com grande apelo popular e de mídia. Seus campeonatos são verdadeiros shows. Mas cabe a vocês, praticantes, decidir se querem participar de um esporte que se presta a entretenimento, ou se preferem ser protagonistas de um show que finge ser esporte.

Marília Coutinho

OBSERVAÇÃO

Tentei ser o mais imparcial possível, inclusive assumindo a responsabilidade de um dos erros que aconteceu. Minha postura agora é me manter eqüidistante de todos os grupos e simpática a eles. Eu não estava em Caxias e não disse que defendo ou deixo de defender ninguém – nem organizadores, nem atletas. Só disse que, na ausência de um código de procedimento, esse tipo de desentendimento vai continuar a acontecer. Vejam que em nenhum momento eu afirmei que os ganhadores não tinham mérito e sim, lamentei o conflito resultante. É muito triste a um atleta vencer e ter seu mérito questionado.

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