O mercado editorial brasileiro para divulgação técnica: o caso da atividade física e treinamento (1)

O mercado editorial brasileiro para divulgação técnica: o caso da atividade física e treinamento (parte 1)

Para que serve uma revista temática? As respostas são variadas e muitas vezes conflitantes. Vamos percorrer esta questão pelos níveis de atores no processo de produzir, comercializar e consumir este ítem.

Comecemos pelo consumidor, que será o foco deste texto. O consumidor consome quatro coisas numa revista: informação, entretenimento, valores e outros ítens de identidade grupal, e, finalmente, conforto emocional. Há superposições. Há também contradições, e sérias.

A primeira contradição diz respeito à natureza e papel da informação de uma revista temática. Boa parte das revistas temáticas é técnica. Exceto pelas revistas eróticas/pornográficas, esotéricas e poucas outras, quase tudo é técnico e em grande parte científico. Vivemos numa sociedade altamente tecnológica e científica, na qual estes componentes estão imersos em qualquer mercadoria, informação ou ação dos indivíduos.

A informação, portanto, tem duas funções primordiais: otimizar uma tomada de decisão de seu consumidor e ampliar o “modelo de situação” deste consumidor sobre o conteúdo da informação. Ambas as funções aumentam a quantidade de controle e poder do consumidor da informação sobre suas ações individuais no que diz respeito ao conteúdo da informação. Vários modelos procuram explicar a relação entre a qualidade (linguagem, vocabulário, abordagem, profundidade, isenção, transparência, abrangência, etc.) e quantidade de informação e a qualidade da decisão sobre a qual esta informação influi. Tais modelos têm como foco a decisão individual, ainda que num contexto social. Já a ampliação e/ou atualização do “modelo de situação” dizem respeito à relação do consumidor da informação com um determinado contexto, socialmente partilhado.

Digamos que a revista temática é sobre automóveis. Uma informação de boa qualidade e quantidade sobre uma inovação no sistema de uso de combustíveis pode determinar a decisão de um usuário sobre a compra de um veículo. Pode também mostrar a ele que a rota tecnológica dos sistemas de controle de combustíveis aponta uma tendência. Ciente disto, o usuário da informação tem maior controle sobre a grande temática de sistemas de combustíveis em veículos econômicos. Torna-se um ator mais poderoso, pois tem mais ferramentas para dialogar com outros atores (vendedores ou os próprios veículos de informação). Torna-se mais custoso ao comerciante “empurrar” a este consumidor uma mercadoria maquiada ou informação falsa. Acho desnecessário transferir o caso para a área do condicionamento físico e treinamento, onde a empurroterapia é o que domina o mercado.

Assim, a informação de boa qualidade e quantidade aumenta o poder de crítica e a eficiência das tomadas de decisão de seu consumidor, gerando um círculo virtuoso (do ponto de vista dos interesses do consumidor): em escala, os consumidores aos poucos moldam um mercado de informação e do objeto da informação cada vez mais sofisticado e competente. Este, no entanto, é o tema do próximo texto (a produção e comercialização da informação).

Tendo pincelado a informação, passemos para o consumo de entretenimento. Uma parte não desprezível dos consumidores de revista temática está mais interessada no conteúdo como entretenimento do que como ferramenta de “empoderamento”. As pessoas em geral esquecem que o indivíduo educado tem prazer através da obtenção de nova informação. O prazer pode vir da euforia quanto a elementos positivos do conteúdo desta informação (uma espécie rara de leões brancos se reproduzindo, por exemplo), quanto ao inusitado (macacos quantificam com pedrinhas), quanto ao engraçado, ou quanto à forma (linguagem, vocabulário).

Do ponto de vista do consumidor, entreter e “empoderar” (dar poder) não são contraditórios. Do ponto de vista do produtor e do comerciante de informação, quase sempre o são em nosso país.

A questão dos valores é séria. Na divulgação científica biológica, por exemplo, até hoje não é simples confrontar com “a melhor evidência de pesquisa” concepções racistas e machistas sobre superioridade de etnias e gênero, mesmo que esta (a superioridade) seja travestida de “diferença”. No nosso caso, cutucamos feridas morais muito sérias, como a moderação, a normalidade e a naturalidade. O discurso majoritário é o da medicina e o das indústrias que a alimentam, como a farmacêutica. Assim, o exercício deve ser moderado, há um peso normal e uma forma ou funcionalidade naturais. É subversivo dizer que com o tal exercício moderado cardio-vascular o diabético vai perder o pé, que não existe peso normal, e sim composição corporal adequada ao indivíduo e que a natureza nos otimizou para reproduzir, e não para viver com qualidade ou prazer. As propagandas na área do condicionamento e treinamento sempre mostram a famosa fita métrica na barriguinha, o visor da balança e um bando de sempre-jovens brancos e de mesma estatura (uma curva normal chata).

Finalmente, temos a questão do conforto emocional. O conteúdo de uma informação, se drasticamente em desconformidade com valores morais do consumidor, pode gerar desconforto. Não podemos esquecer que as pessoas têm um impulso de pertencimento forte que as faz se agarrar com unhas e dentes ao valor da normalidade. Nesse desespero, não conseguem enxergar que a normalidade socialmente construída pelos outros atores – midia, indústria farmacêutica, indústria de moda, outras profissões da saúde – é uma ficção inatingível, e não um segmento majoritário da população (“norma”). A mentira de que um treino padronizado em circuito, sem intensidade, sem o menor fundamento fisiológico, feito três vezes por semana num ambiente hipnótico corrigirá na mulher o que ela vê como “desvios” é quase impossível de se combater. A prova é a multiplicação de academias que seguem esse modelo.

O mercado editorial, infelizmente, não está em desacordo com esta tendência.

Sobre ele, falo a seguir. Hoje ficamos com o consumidor.


 

 

 

 

 

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