Phoenix

(para Nacho)

 

Sem muita pretensão interpretótica, a função das figuras mitológicas é catalizar significados de alguma forma mais profundos do que os verbalizáveis ou acessíveis à nossa reflexão. Existem algumas destas figuras que têm uma simbologia muito poderosa para mim. Em certo sentido, me ajudaram a fazer as pazes comigo mesma – com meus talentos e também minhas deficiências e dores. Como em tudo que amadurece, fui percorrendo aos poucos esse universo simbólico. Primeiro foi o lobisomem. Quando decidi abandonar totalmente a via medicamentosa para administrar minha desordem bipolar e ela se expressou, como diz meu amigo psiquiatra, em sua forma violentamente “pura”, um dia batizei-a de “warewolf disorder” (a desordem do lobisomem). Foi num momento muito doloroso, em que fui obrigada a humildemente admitir que ela é mais poderosa do que eu achava e que os controles que eu pensava que tinha eram insuficientes. Depois de quase morrer, foi assim que me vi: um ser que traz dentro de si uma besta de poder destrutivo incontrolável. Naqueles dias, sem muito saber como lidar com essa nova realidade e sem querer capitular e admitir de volta os medicamentos, entrei num acordo com meus irmãos segundo o qual, manifestados determinados sinais, eu lhes daria a chave do carro e me entregaria inteiramente ao controle deles, pois daquele momento em diante me declarava incapaz de decisões racionais. O tempo passou, desenvolvi controles mais eficientes, e a imagem da besta incontrolável pronta para emergir foi ficando menos central na minha representação de mim mesma.

Por baixo dela sempre existiu uma outra, violenta também, porém mais benigna: a do ser que morre e re-nasce. Executei inúmeras vezes destruições muito extensivas de quase tudo do contexto de uma determinada fase da vida – projeto profissional, local de moradia, imagem física, relações sociais, casamentos e até mesmo pedaços do corpo -, seguidas de uma “re-invenção” de mim mesma, num plano quase sempre surpreendente aos que me conheciam. Por conta disso já fui duramente criticada por todo tipo de gente, desde aqueles que abertamente não gostam de mim até os que se sentiam incomodados por essas transições, consideradas impróprias para quase tudo. Predisseram cedo meu fracasso acadêmico, já que considera-se que o sucesso nesse tipo de carreira tem como componente fundamental a sistematicidade, a especialização e a fidelidade a um determinado projeto, linha ou tema. Não foi o caso, pois enquanto essa foi minha carreira, a despeito das radicais mudanças de linha, tema e até mesmo disciplina científica, publiquei bem mais do que quem previu meu fracasso. E um dia simplesmente me enchi de tudo e virei as costas à carreira inteira – em parte racionalmente, porque acho que o que tinha de importante para dizer naquele “formato” eu já disse, em parte por temperamento. Vejo meus colegas “bem-sucedidos” publicando o trigésimo quinto artigo exatamente sobre o mesmo assunto, apenas com uma ligeira mudança na metodologia, ou na aplicação dela, mas, honestamente, não acrescentando nada de estimulante, novo, divertido ou útil. Pode-se considerar que isso, ao longo dos anos, constrói uma trajetória útil e importante. Mas não é para mim. Tendo expressado meu ponto de vista e explorado minimamente um tema, o momento em que considero que aquilo se esgotou chega logo. E aí tudo muda.

O problema é que uma boa parte das vezes isso não é simplesmente uma decisão racional e objetiva: “esgotei o tema A, agora vou me dedicar ao tema B”. Não: elas vêm acompanhadas de enormes conflitos e rupturas violentas, uma vez que em geral não estamos sozinhos em empreitadas. Existem relações com outros… E aí, tudo se destrói.

Meses depois eu re-apareço – em outra cidade, com outros projetos e muitas vezes com outra imagem inteiramente diferente. Pessoas que me conheciam passam por mim sem reconhecer. Em 2001, eu me dedicava a coordenar projetos de pesquisa sobre propriedade intelectual e interagia com a comunidade de ciência política, onde me machuquei bastante. Escrevia sobre coisas das quais não gostava muito, utilizava abordagens que me convenciam “mais ou menos”, administrava minha doença com milhares de medicamentos bestificantes, pesava entre 41 e 43kg, tinha cabelos ruivos e um ar abatido. Hoje escrevo sobre questões de saúde, me recuso a manter qualquer fidelidade a teorias ou abordagens, interajo pouquíssimo com a comunidade acadêmica, me dedico a um programa social numa favela paulistana e estou envolvida até o pescoço com o esporte, a saúde e a integridade física e mental. Não tomo nenhum medicamento, peso entre 55kg e 56kg, chegando até 60kg (quase 20kg a mais que há menos de 6 anos e muito feliz com o que vejo no espelho), tenho uma enorme massa muscular, sou loira, cheia de piercings e quase sempre tenho um ar doidão. Quem me conheceu em 2001, facilmente passa por mim nos corredores e não me cumprimenta – é outra pessoa.

A Marília de 2001 morreu, graças a deus. A de 2004, que iniciou esse novo percurso, também morreu, mas se sacrificou por uma pessoa bem melhor. Em 2005, sem muita noção do quanto controle eu tinha sobre a doença, quase morri (ou melhor: morri) e desse episódio também emergi diferente – MUITO diferente. Foi nesse momento que formulei outro projeto profissional e de vida, passei a interagir de outra forma com amantes e amigos e mais uma vez minha imagem mudou. Caminhei por um tempo nesses projetos ainda embrionários até que em julho de 2006 conheci Paraisópolis, a GCA e o Gilson. Virei as costas aos projetos furados e mais uma vez nasci de novo – uma ave muito mais poderosa, em todos os sentidos, com enormes asas coloridas e muito mais feliz. Uma ave que supina 80kg, que agüenta 90% de “nãos” a pedidos de patrocínio para nosso projeto social sem esmorecer, que carrega muito mais peso nas costas e no peito, mas vive uma vida muito mais leve.

A Marilia anterior morreu, se incinerou, e das cinzas desse holocausto apareceu alguém novo. Se melhor ou não, nunca vou saber. Não gosto destas categorias. Mas suficientemetne diferente para que eu diga que é outra pessoa. Sempre são, tenho uma coleção de mortes: em 1997, em 1993, em 1989…. E dezenas de outras, sempre um holocausto de chamas brilhantes, sempre uma ave 0nova voando de suas cinzas.

Essa é a Phoenix.

A Phoenix aparece nas mitologias de muitas culturas diferentes. Ela é um dos “pássaros de fogo”. Na mitologia egípcia, sob o nome de bennu, ela é um passaro que vive alguns séculos ao final dos quais constrói um ninho de galhos de canela, que, junto com ela, se incineram furiosamente. Das cinzas nasce um novo pássaro, o qual embalsama as cinzas de sua “vida anterior” num ovo de mirra e deposita na cidade de Heliópolis. Os gregos adaptaram o mito e criaram o nome Phoenix. Nesta cultura, o pássaro vivia perto do que hoje seria a Arábia e banhava-se num poço. Nesse momento, Apolo pararia sua carruagem de fogo (o Sol) apenas para ouvir o canto da ave. Para os antigos hindus, sob o nome de Garuda, a Phoenix seria a carruagem do deus Vishnu.

Em comum a todas as representações da Phoenix são o fato de que é uma ave grande, poderosa, freqüentemente representada como de rapina (semelhante a uma águia), colorida, e sempre associada ao fogo e ao Sol. Ela é o símbolo mais forte da morte e re-nascimento e do caráter único e especial do ser (só existe uma Phoenix a cada vez).

O símbolo ficou pessoalmente mais forte para mim depois que assisti X-Men 3 (The Last Stand). Nele, a Dra. Jean Grey “re-nasce” das águas onde havia sido sepultada no episódio anterior. No entanto, a “persona” que re-nasce não é a racional e serena Dra. Jean Grey, e sim a poderosíssima mutante Phoenix, uma espécie de personalidade oculta de Jean. Phoenix é a mais poderosa mutante já identificada, a única nível 5, e movida apenas por impulsos primitivos: medo, raiva, libido.

Quando acabei de assistir o filme, decidi que a tatoo que há tanto tempo ensaio fazer será, mesmo a Phoenix. É o símbolo que expressa tudo que eu lutei anos para conseguir aceitar, e tudo que luto para sempre para conseguir mudar ou controlar, e talvez sintetize a serenidade de equilibrar os dois. Quem administra, como eu, o tipo de transtorno que eu tenho, vive não apenas as mortes e re-nascimentos de que falei, mas também essa permanente mordaça sobre os impulsos mais violentos e poderosos, pois comandados por áreas do nosso cérebro nem sempre controláveis por nossas funções corticais.

Ovo, Sol, Phoenix – todos temas recorrentes na minha vida e textos.

É isso aí, agora me ajudem a escolher a imagem mais legal – acho que será nas costas, em cima do deltóide posterior…

 

Vote em qual imagem vocês acham mais interessante:

 

(1) http://phoenix.bungie.org/images/thisistheend.jpg

 

(2) http://phoenix.bungie.org/artwork.html

 

(3) http://static.flickr.com/31/39863231_f12b42e61c_m.jpg

 

(4) http://www.phoeniximageinstitute.com/newlogo2.png

 

(5) http://www.grouper.com/profiles/groups/ts/j1/j873gq/avatar.jpg

 

(6) http://www1.istockphoto.com/file_thumbview_approve/417103/2/istockphoto_417103_phoenix.jpg

 

(7) http://pegasus.cc.ucf.edu/~torrey/11.jpg

 

(8) http://www.eaudrey.com/myth/images/phoenix.gif

 

(9) http://www.pheonix-az.com/Pheonix_Tattoos.htm

 

Marília

 

BodyStuff

 

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