(esse “debate” é a resposta a uma pergunta feita a mim sobre o vídeo de um atleta que fez um terra com pouca extensão de joelhos)
Dra Marília, no post do José Teixeira, compartilhado por você (infelizmente não consigo comentar lá), ele faz uma série de 20 rps de terra que me chamou a atenção. O atleta quase não faz a flexão do quadríceps. Minha dúvida é: esse exercício executado assim é válido? O peso não fica mais concentrado na lombar podendo levar a uma lesão? Existe uma forma “mais correta” de fazer o terra (agachando ou só flexionando pouco o quadríceps)? Ainda, alguma dessas formas de execução permite ao atleta conseguir levantar mais peso? A execução com pouca flexão do quadríceps é quase um stiff? Obrigado.
Marília – Bom, vamos lá, promessa é dívida.
O levantamento terra tem algumas características bastante peculiares. Uma delas é ser o levantamento sobre o qual mais se chuta, mais se fala besteira e o que mais entretém os chamados “levantadores digitais” (pessoas com pouca ou nenhuma experiência competitiva ou de coaching, mas que “sabem tudo” porque lêem todos os artigos relevantes dos gurus).
O triste do powerlifting é que um guru é tão bom quanto o seguinte: não há realmente experimentação com metodologia confiável suficiente, com amostras que contemplem o alto rendimento (que é onde os fenômenos-alvo se manifestam) e nada que suplante a experiência. Quase toda a pesquisa é feito com indivíduos não treinados. O guru em geral é um sujeito que enfiou uns dogmas na cabeça e não abre mão dos mesmos, já que ele disputa mercado com outros gurus. Uma parte deles é constituída de excelentes técnicos, com vasta experiência, o que não quer dizer que detenham algum tipo de revelação divina. Os brasileirinhos que amam se entreter com bobagens jogam com os enunciados dos gurus como se fossem fatos, e não enunciados.
A segunda característica interessante do levantamento terra é que, embora em termos tipológicos ele pudesse ser classificado como a parte ascendente do movimento “agachar”, o terra tem pouco a ver com o agachamento. Alguns gurus (e até alguns autores) dirão que isso está relacionado com questões como o deslocamento do centro de gravidade, que, ao contrário do agachamento, não está no centro dos pés e sim à frente deles. E eu digo que o que diferencia o terra do agachamento é uma coisa chamada TUDO.
Do ponto de vista cinemático, o agachamento é um movimento contínuo, fluido, enquanto o terra é segmentado . Cada segmento de um terra executado em intensidades altas por atletas já adaptados exibe peculiaridades biomecânicas em geral ignoradas.
Terra está, na tipologia do movimento, dentro do ato de “puxar” (no contexto dos componentes “empurrar”, “puxar”, “agachar”, “rotacionar”, etc.). No entanto, a relação do terra com uma puxada olímpica é até mesmo negativa: enquanto no terra a aceleração é impressa no liftoff (saída), garantindo, se o cara der certo, uma velocidade constante até a finalização, nos levantamentos olímpicos a puxada só ganha velocidade a partir do knee pass. Ou seja: só porque são puxadas, não são nada comparáveis. As puxadas/levantamentos olímpicos são triplas extensões dos membros inferiores (tornozelo, joelho, quadril). O terra é dupla (joelho, quadril). As puxadas olímpicas são saltos para imprimir aceleração suficiente à carga de maneira que ela permaneça em trajetória ascendente sem que o levantador imprima força para tanto.
O quanto de extensão de MI é proporcional à vantagem mecânica da altura do quadril, coisa que é resultado das relações antropométricas do levantador. Assim, você verá levantadores mais altos saindo com o quadril mais alto e, naturalmente, um extensão de quadril (com a sobrecarga na lombar que preocupou você) muito maior do que a extensão de joelhos. Isso não é problema. O que é realmente requisito para um bom terra – seguro e mecanicamente eficiente – é que a coluna permaneça NEUTRA e relativamente constante durante o levantamento. Não é necessário (e nem conveniente) que ela tenda a se verticalizar. Afundar a bunda para fazer terra é ineficiente, mas eu até prefiro que meus alunos tentem: rapidamente eles entendem a diferença entre um arranco/arremesso e um terra, pois se dão conta de que não tem como eles “desejarem” imprimir velocidade suficiente à carga para que ela ganhe inércia suficiente de modo que ele não imprima mais força para garantir a trajetória ascendente da mesma.
O quadril é SEMPRE mais alto. A coluna é SEMPRE neutra. E as escápulas são SEMPRE aduzidas. “Ah, mas o Andy Bolton e o Kostantin Konstantinov…”. Ora, ora… o tamanho da musculatura dorsal do sujeito é tal que você só poderia afirmar se ele está ou não fazendo adução de escápula com um raio-X durante o movimento. Quer saber de mim, que sei? ESTÁ. Caso contrário, sem que voluntariamente o levantador oponha a força que puxa seus ombros para baixo (chama-se gravidade, coisa bem dramática com cargas altas) com uma força equivalente feita pelo conjunto de músculos da região dorsal, os quais por sua vez, garantirão que a lombar permaneça firme e, portanto, consistente com a extensão de quadril, o movimento vira um “C” e morre ( veja aqui ).
Retomando: tem gente que estende pouco os joelhos e muito o quadril E TUDO BEM, o que não impede que eu corrija meus alunos até achar o ponto em que achemos a vantagem mecânica do movimento, baixando a bunda deles. Retomando: coluna neutra, portanto, adução de escápulas e lombar travada. Tem referência para tudo isso – umas boas e umas ruins. Para quem está lendo isso, pouco importa. Para quem quer: 1. vá ao pubmed com as expressões de busca corretas e divirta-se; 2. ache o capítulo disso no meu livro; 3. pergunte ao Claudio Gomes Pereira, que é organizado e tem as referências guardadas. O que impota para quem quer entender a bagaça e fazer um terra legal é isso que eu escrevi. Se vier um monte de pós-adolescente com “hair splitting” (procurem no google, eu não sou google) issues, não esperem que eu responda. Marília = autora, professora de muito mais gente do que ela lembra e levantadora de peso em aço, e não digital.
Stiff: stiff É UM TERRA. Entre o stiff-legged-deadlift (carinhosamente chamado de stiff) e um terra de baixinho com super flexão de quadril e joelhos há um continuum. Aí vêm uns tontos e dão nomes para cada amplitude: terra francês, terra belga, terra húngaro, terra yanomami… É TUDO TERRA. Leia acima sobre o tanto de extensão de cada uma das duas articulações envolvidas se faz. Um terra “stiffado” , obviamente, tira pouco benefício da força relacionada à cadeia cinética extensora do joelho. É menos eficiente “numas”, pois se para flexionar o joelho o sujeito altão tiver que baixar a bunda para uma altura mecanicamente desvantajosa, morreu o movimento. Todas as formas são válidas desde que o cara não perca a NEUTRALIDADE DA COLUNA. Aliás, competitivamente, todas as formas são válidas desde que o movimento seja contínuo (sem vai e vem) e termine em lockout total (joelhos e quadril travado). Na competição, ninguém está preocupado com a saúde da coluna do levantador – só ele deveria estar.
Pessoa A – Esse artigo chamou-me a atenção. Ele mostra a parte inicial (liftoff) do terra dos maiores deadlifters. De fato, todos iniciam com o quadril numa posição mais elevada e canelas mais verticais, delegando maior trabalho para a lombar. No próprio livro do Andy Bolton, Deadlift Dynamite, ele detalha sobre este tipo de posicionamento (também adotado por ele). Eu mesmo cheguei a testar este tipo de posição em meu terra e preferi assim. De fato, precisa-se de maior mobilidade, pois é necessário alongar mais as hamstrings para alcançar a barra, mas ai, penso eu ser mais questão de treino de mobilidade, e não muito pela estrutura corporal de cada um.
http://bretcontreras.com/the-keys-to-stronger-deadlifts/
Quanto a adução de escápula, é aquilo que debatemos outro dia: alguns preferem aduzir, outros não. A vantagem de aduzir é maior segurança para a lombar e uma posição de, diga-se, ‘pré-lockout’, o que facilita o lockout ao final do movimento. Mas, ao meu ver, é uma posição que dificulta a saída, já que é necessário abaixar mais o corpo para alcançar a barra. Você ganha vantagem de um lado e perde do outro. Acho que vai da preferência de cada um.
Marília – Não é não, Pessoa A: TODO levantador pesado aduz escápulas. Se isso é visível ou não, são outros 500. É muito simples: sem adução de escápula, não há estabilidade suficiente para manter a LOMBAR (contra-intuitivo, né? só que não) travada. O movimento todo colapsa do ponto de vista mecânico. De novo: técnico de powerlifting de youtube não é muito confiável. É preciso estar lá com os caras e saber o que fazem. Aduzir a escápula num terra pesado depois de começado o movimento é o mesmo que “se arrumar” no banco com uma carga recorde de supino: perdeu o movimento. Há outros artigos sobre o tema que oferecem mais explicações mas não dizem muito mais do que eu já disse: se o levantador não opuser resistência ao que a gravidade está fazendo, que é puxar seus braços e “desarmar” o dorsal, o terra já era. Você tem duas opções: acreditar em mim ou não. Não há experimentos com nada disso.
Pessoa A – Faz todo o sentido, realmente! É que tomando como base, por exemplo, as imagens deste artigo que postei, veja e compare a foto do Andy Bolton e do Konstantin: o Bolton parece estar aduzindo a escápula; não a um nível absurdo de adução, mas um tanto. Já o Konstantin não parece nada estar aduzindo. Ou é escolha dele ou o peso está absurdamente alto que aduzir as escápulas seria impossível. Vai saber.
Ou então ele é um ser extraterrestre (que de fato penso ser, rsrs) e consegue manter a lombar numa posição de segurança ao mesmo tempo em que permite a não-adução de escápulas.
Marilia – Pessoa A… TODOS estão aduzindo isometricamente as escápulas. Sabe o que aconteceria se não estivessem? A barra não sairia do chão… Ninguém disse que o cara tem que fazer uma remada. Mas eu aposto tudo que você quiser que de maneira NENHUMA a musculatura responsável pela adução de escápulas e estabilidade dorsal (rombóides, trapézio, etc) está solta. Está tudo contraído e duro. Não confundir adução de escápulas com a forma hiperextendida do dorsal, totalmente impossível de se manter num terra pesado pelos mesmos motivos já citados, proveniente da famosa… GRAVIDADE!
É muito simples: tem um peso monstruoso puxando seus braços, ombros, costas e você inteiro para BAIXO. Se você não opuser essa força com outra equivalente, que impeça que esse peso puxe cada vez mais seus ombros para baixo, a barra vai continuar no chão…
Pessoa A – Now things are lightened. Eu estava confundindo exatamente este ponto: a adução de escápula do supino, por exemplo, que você claramente vê a ‘asa de frango’ fechadinha, com a adução de escápula no terra. Coisas diferentes.