Sangue e lágrimas pelo Clube do Choro

O Clube do Choro, criado pelo Partidão (Partido Comunista do Brasil, PCB) em 1977 com a cara pública do jornalista Sergio Gomes, está sendo resuscitado (veja a notícia da Folha de São Paulo abaixo). Ler esta notícia, como outras que lembram a política de ação e militância cultural stalinista, me causa reações físicas de horror. Eu, e talvez outras das “crianças do comunismo” brasileiro, fomos domesticadas, humilhadas, submetidas a um duro programa de reeducação ideológica e por fim subtraídas de qualquer vontade ou projeto próprio através de programas como esse.

Nele, nos era enfiada goela abaixo uma concepção de cultura nacionalista e xenófoba, além dos elementos básicos para nossa obediência sob o centralismo democrático do partido que nos recrutaria: uma representação de nós mesmos como incompletos, como devedores para uma humanidade abstrata para a qual nascemos em pecado de classe, como inadequados, e incorrigíveis. As tarefas que nos davam ali, onde éramos mão de obra escrava, era um programa educativo para o que viria mais tarde, bem mais pesado.

O olhar condescendente, cheio de desprezo, dos “camaradas” era um lembrete permanente de que não importa o que fizéssemos, não era o suficiente.

E agora eu paro de usar o coletivo. Não sei mais quem somos “nós”. Havia umas duas ou três outras crianças-mão-de-obra no Clube do Choro, mas sabe-se lá se não foram pasteurizadas a ponto de sumirem pelas frestas do sistema, absorvidas pelo prozac e pela apatia.

Comigo o processo pode ser comparado a Laranja Mecânica. Meu rock’n roll era pecado: agora eu deveria ouvir apenas chorinho. Deveria tratar os músicos como deuses e cumprir as tarefas de marketing todas. Meus gostos foram todos julgados como pequeno burgueses e foi no final desse ano demoníaco de 1977 que eu abandonei o primeiro amor da minha vida, a esgrima, onde eu realmente era uma grande atleta. Mas era um esporte pequeno burguês, elitista. Era minha obrigação abandona-lo para me dedicar à revolução e à cultura popular. Aquela que sempre me foi estranha, nunca falou à minha alma e que hoje me causa ânsia de vômito.

Sergio Gomes comandava o programa de lavagem cerebral das crianças do comunismo. Foi dele que recebi as primeiras lições de casa e tarefas no Clube do Choro. O visual dele permanece exatamente o mesmo de 1977: uma versão de cabelos meio longos de Stalin. Até os olhos apertados no quase sorriso de superioridade é a cara do mestre.

Ele nunca deixou de ser o doutrinador arrogante com desprezo por todos. Uns quatro ou cinco anos atrás eu, com muitos títulos acadêmicos e experiência acima dele, me ofereci, generosamente, para contribuir material de texto quanto à saúde ocupacional para algum dos projetos de imprensa sindical da Oboré. Eu entendo de movimento humano e gestos lesivos, coisa sobre o que eu sei quem nenhum sindicalista ou médico entende. Eu ainda não tinha claro que essa coisa toda precisa ser mantida à distância. A resposta foi : “venha até aqui num horário de almoço para eu avaliar isso – assinado, Serjão, sedentário e fumante”.

Não me dei ao trabalho de responder. Foi só uma comprovação de que essa gente é mesmo monstruosa e nem décadas depois consegue ver até mesmo o óbvio: entre nós dois, quem estava na posição de oferecer era eu. Quem tinha que ser agradecida e tratada com deferência era eu. Mas essa gente não consegue sair do paradigma de que, perante o Partido, a Revolução e eles mesmos, grandes revolucionários, todos nós somos ratos devedores.

Eu ando com fone de ouvido na bolsa e um mp3-player vagabundo, para não correr riscos desnecessários com meu smartphone. O motivo é que eu não quero ser exposta a qualquer estímulo que me lembre os anos de chumbo que começaram ali, no Clube do Choro, e continuaram por uns anos no Partidão, onde as médicas ressentidas do ABC me vigiavam e uma figura estranha, de óculos, rabo de cavalo e sorriso sádico me aplicava punições semanais. Toda semana tinha um pecado novo e uma ave-maria nova para que eu rezasse.

Esse pesadelo terminou um dia, com muito sangue meu derramado. De vez em quando algum fantasma do passado vem me assombrar, como essa notícia. Não existe superação para o trauma causado por tortura psicológica sistemática. Depois do Partidão, veio a Convergência, onde a tortura psicológica ganhou um upgrade material em forma de estupro e abuso sexual sistemático.

Mais de trinta anos depois, não há como esquecer. O Chorinho é um som que não me causa mais choro, mas ódio, profundo ódio. Não há o que pague essa dívida.

 

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