Síntese das idéias sobre preconceito muscular

(esse foi um post no forum de um amigo meu, Braulio Colmanetti)

Antes de mais nada, Braulio, peço desculpas por não ter comparecido antes, já que mais ou menos tudo andou se complicando por aqui e eu queria contribuir com algo decente.
Para começar, gostaria de dizer que talvez eu choque um pouco vocês todos com algumas das idéias que eu tenho sobre essa questão do preconceito contra nossos corpos. Por outro lado, talvez não, já que vocês me conhecem e sabem que de normal eu tenho muito pouco. E graças a deus, nunca contei com uma turma de amigos e companheiros tão pouco preconceituosa e aberta às minhas maluquices quanto vocês, meus iron-brothers.
Acho que eu começo dizendo que esse preconceito é:

1. muito mais antigo do que imaginamos
2. muito mais pervasivo (ou seja: invade muito mais “áreas” da nossa vida social) do que parece;
3. muito mais diversificado do que percebemos

Passemos para a antiguidade. Na minha opinião, o preconceito contra o corpo musculoso tem uma raíz: A SEPARAÇÃO ENTRE CABEÇA/MENTE E CORPO. O corpo musculoso nada mais é do que um corpo em evidência. Os músculos são a expressão da estrutura e do movimento. Não é por acaso que as frases mais comuns associadas a esse preconceito expressam exatamente isso: “muito músculo, pouco cérebro”. Nesse sistema, “cérebro” (que, por ser sede da “mente”, não é considerado “corpo”!) se opõe à “músculo”.
De onde teria vindo isso? De uma separação histórica entre aqueles que possuem corpos, que EXECUTAM coisas, e aqueles que MANDAM (tomam decisões, sendo a sede das decisões, o cérebro, a cabeça). Escravos X Senadores. Servos X Senhores. Proletários X Burgueses.
Obviamente, a estética de quem manda também manda no mundo das representações, ou seja, na maneira com que descrevemos, fotografamos, pintamos e pensamos a realidade. Os corpos bonitos são os corpos que não fazem porra nenhuma de FÍSICO, pois sua função social é mandar e ser servidos.
Essa herança vem lá de trás, do momento em que nossa civilização se montou em cima de uma estrutura de classes, onde tem quem faça e quem se apropria do que os outros fazem.
Somou-se a isso a moral mais importante do mundo ocidental: a moral judaico-cristã. Nesse sistema de valores, corpo é ruim, espírito é bom e as duas coisas são essencialmente diferentes. “A carne é fraca”. Veio daí uma longa trajetória de submissão sofrida dos corpos, auto-flagelação, ascetismo, etc. Corpo é coisa ligada ao “mal”, ao demônio. E músculo é, como eu disse antes, a expressão exacerbada do corpo.
Essa combinação de tendências na história da civilização só podia dar na merda que deu para nós.

Só que, como é a característica da história da nossa civilização, em cima de uma tendência, outras na mesma linha se constroem.
Peguemos a saúde, por exemplo. A profissão dominante na área da saúde é a medicina e, dentro dela, a cardiologia. Quando a gente diz dominante, os critérios são o peso profissional medido pelo tamanho e força política das associações, prestígio, custo das intervenções, prioridade no sistema de saúde, poder decisório, etc. Tudo coisa mensurável, nada que eu esteja inventando. Quando, muito recentemente, os cardiologistas começaram a enfatizar PREVENÇÃO e olharam pela primeira vez para atividade física, no pós-guerra, olharam apenas para as atividades aeróbicas. O motivo parece óbvio: porque essas atividades são as que exibem uma relação mais direta com respostas cardio-vasculares. Seria só isso? Acho que não. Hoje sabemos que o treinamento de força é mais relevante para prevenção e tratamento de desordens cardio-vasculares do que os exercícios aeróbios – há evidência experimental para isso. Minha opinião é que ela não foi enfocada antes porque a FORÇA, como capacidade funcional, é tão desprezada pela medicina como todo o “pacote” que envolve o desenvolvimento da musculatura.

Explicando melhor: o desprezo da medicina pelo aspecto preventivo do treinamento de força, a negligência dos cientistas em estudar força e hipertrofia muscular, o repúdio à estética musculosa, o preconceito com pessoas musculosas e a associação entre força e burrice estão NUM MESMO PACOTE DE PRECONCEITOS FORTEMENTE ARRAIGADOS.

Mas… e sempre tem um mas – os corpos musculosos exercem atração sexual. Isso não há quantidade de preconceito que consiga aplacar totalmente. Além disso, o desempenho sexual de pessoas musculosas é superior ao das pessoas não-musculosas (e infinitamente maior do que o das sedentárias). O resultado disso é que se desenvolveu essa relação esquisita e ambivalente com os corpos musculosos: “detesto mas quero”. “Não quero pra casar, mas quero comer”. Isso e o fato de sermos raros (e, portanto, em geral, “diferentes”), atrai uma coisa diferente do simples preconceito: o ódio e o ressentimento. Que estão relacionados também a inveja.

De maneira geral, acho que apesar de todos nós já nos termos deparado com preconceito, ele é administrável. A não ser em poucas situações, é fácil de contornar e não chega a atrapalhar. Mesmo para nós, mulheres, cujos corpos musculosos são uma grande controvérsia (afinal, somos ou não machonas? Quem gosta de nós é gay ou não?), não percebo grandes incômodos. Minhas amigas atletas são quase todas bem casadas ou namoradas, eu tenho uma vida amorosa tranquila e a vida vai indo como tem que ser.

Minha opinião é que o preconceito é mais perigoso no geral, impedindo benefícios importantes à saúde pública, do que individualmente para nós. E nós temos com função oferecer à sociedade essa alternativa que só tende a beneficiar a todos.

Abaixo acrescentei os links de alguns textos que escrevi com essas idéias, que tentei resumir aqui.

Sobre o ódio – http://mariliacoutinho.livejournal.com/15433.html
Algumas considerações sobre bola – http://www.livejournal.com/users/mariliacoutinho/9151.html
Aspectos ocultos do preconceito: a marginalidade científica da força (1) – http://mariliacoutinho.livejournal.com/4560.html
Aspectos ocultos do preconceito (2): a marginalidade científica da hipertrofia muscular – http://mariliacoutinho.livejournal.com/5145.html
Bodybuilding – esporte marginal – http://mariliacoutinho.livejournal.com/5636.html
Trivializando o conceito de dependência na base do preconceito
http://mariliacoutinho.livejournal.com/7682.html
A desvalorização do profissional do treinamento de força na área da atividade física
http://mariliacoutinho.livejournal.com/8576.html
Esportes de força: politicamente incorretos? (tradução do de baixo)
http://mariliacoutinho.livejournal.com/1212.html

Marilia


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