Sororidade no dos outros é refresco

Aparentemente, a Bianca iniciou um interessante experimento político com seu artigo sobre por que não transa sororidade (veja link abaixo). Não vou reproduzir os argumentos que foram expostos ad náusea no dito debate. Um aspecto, no entanto, me chamou atenção: a pistola apontada para nossas cabeças, por parte de pseudo-revolucionárias, disparando falsas dicotomias: sororidade X fragmentação e destruição do feminismo? Sororidade X conivência com os estereótipos machistas quanto à disputa mesquinha que seria intrínseca às mulheres?

Algo ali me era familiar. Uma parte da minha memória dizia que já apontaram pistolas semelhantes para mim. Lembrei! Socialismo X barbárie? Ditadura do proletariado X barbárie? Foi um tempo negro, em que falar em democracia só era admitido como recurso propagandístico para “as massas” ainda sem “consciência para si”. Na verdade, o verdadeiro revolucionário sabia que democracia era um palavrão. Ser chamado de democrata era o mesmo que ser filho da puta.

O que está em jogo, sempre, é a questão da liberdade individual. Acho que eu preferia quando vinha um stalinista ou trotskista autoritário e proferia sem pudor o besteirol segundo o qual liberdade individual era uma demanda pequeno-burguesa. Como tal, digna de fuzilamento (não é brincadeira: as conversas mais acaloradas freqüentemente terminavam em “…se fosse outra etapa você seria fuzilada”).

Vamos combinar: se isso é esquerda, quem precisa de direita?

A questão é complicada e quase que um exercício de terapia de grupo. Primeiro, estas dualidades não refletem realidade nenhuma. Simplesmente não têm fundamento. Mas e se tivessem? Se realmente, uma sociedade plenamente justa só o pudesse ser se fosse igualitária? E, portanto, supressiva de diferenças individuais? Vale a pena viver num mundo assim?

O nosso hipotético estalinista (ou trotskista, dá no mesmo, a diferença entre eles é só a revolução permanente, um detalhezinho no totalitarismo de ambos) diria: “mas você acha que não vale porque você é membro da elite privilegiada que tem acesso a tudo. Um excluído toparia uma ditadura que calasse a sua boca para que ele tivesse acesso a coisas que ele hoje não tem”.

Jura? Nossa, gênio. Descobriu que os seres humanos não são bonzinhos por natureza. Parabéns! Você está pronto para discutir com Rousseau. Com dois séculos de atraso.

É aí que eu digo que o buraco é mais embaixo e requer um olhar sincero para dentro de si. Sim, somos a elite simbólica. O acervo cultural da civilização ocidental, como a conhecemos, questionável ou não mas jamais desprezível, foi feita por gente como nós. O fato de reconhecermos que há enormes e injustificáveis déficits de justiça, alimentação, educação e outros itens básicos de humanização na população da nossa espécie não faz com que nenhuma das dualidades acima seja válida por inferência (menin@s, vocês faltaram em lógica I e II). Ou seja: assimetrias não são corrigíveis apenas por supressão dos segmentos com superávit de qualquer coisa, principalmente no que diz respeito a aspectos da política institucional, cultura e comportamento.

Vamos aos exemplos concretos. Tod@as somos feministas e concordamos que há um déficit de poder, justiça, auto-determinação, entre outras coisas entre os sexos e gêneros. Corrigir este déficit através da subtração do suposto superávit dos segmentos que exercem mais tais itens é oportunista e idiota. É básico a uma concepção moderna de democracia e política que é possível incrementar o quantum de poder de um segmento sem subtrair o do outro. Assim, não é preciso limitar os direitos de ir e vir, vestir-se como quiser ou se expor dos homens para conquistar os mesmos direitos para as mulheres. Parece ridículo? Eu queria que parecesse para começar a cair a ficha quanto a operação lógica que estou tentando induzir. Para uma mulher andar tranquilamente de mini-saia nas ruas, não é necessário proibir homens de andar de short. É preciso reprimir (usar violência) contra aqueles que reprimem (usam violência) as mulheres que andam de mini-saia.

Vamos às questões étnicas. Foi aí que fui surpreendida por um argumento para-estalinista. Para que as pessoas negras possam expressar suas especificidades culturais, celebrar sua ancestralidade e valorizar sua etnia, lutando por mais justiça e contra o preconceito, NÃO É NECESSÁRIO suprimir os mesmos direitos a nenhuma outra etnia ou grupo nacional.

A decisão de uma cidade Canadense de proibir uma festividade de celebração viking com o argumento de que seria racista me chocou a ponto de revolta. Ora, então os descendentes de escandinavos não podem se reunir e festejar suas origens? E os descendentes de celtas (ou seja, 50% da população branca da America do Norte)? Não podem organizar, realizar e celebrar os Highland Games? Uma das festividades públicas mais divertidas e inclusivas que existe?

E a festa da Nossa Senhora da Achiropita no Bexiga, aqui em São Paulo? Não pode mais porque entre a nossa classe dominante e elite simbólica pelo menos 20% são de origem italiana branca?

E o ano novo chinês? E as festas da cultura japonesa na Liberdade?

Foi necessário mudar o nome do Sport Club Germania para Esporte Clube Pinheiros nos anos 1940s? Ou foi apenas uma manifestação autoritária da ditadura de Vargas?

A democracia é um jogo sujo, mas é a melhor forma de organização política já inventada. É sujo porque não é bonitinho, não faz com que as pessoas se aceitem e se amem, nada disso. Ela administra e regulamenta a co-existência de grupos de interesse e de uma sociedade plural, ponto final. Na democracia, existe luta e re-acomodação destes grupos o tempo todo, à medida que a correlação de forças entre eles muda. Quem cheirou Dahl e Lipset aqui, cheirou certo.

Assim, no jogo da democracia, está dentro das regras reclamar, por exemplo, se uma manifestação supremacista branca é permitida em praça pública. Neste caso, houve uma infração do jogo: uma parte está usando o espaço público para tentar acabar com o jogo, propondo o genocídio de outro grupo de interesse. Mas está dentro das regras do jogo uma festividade evangélica que tenha protocolado sua solicitação à prefeitura e feito as coisas com ordem, desde que em seu conteúdo não haja mensagens de ódio e incitação a ação contra outros grupos (“judeus vão todos para o inferno” ou “pessoas do candomblé são do mal”).

Censurar a celebração de ancestralidade de qualquer grupo é completamente contra as regras do jogo. A atitude da prefeitura canadense que reprimiu a festividade de celebração viking é claramente anti-democrática.

Forçar um movimento a adquirir aspectos de grupo ou seita é anti-democrático. Movimento social é uma ação com foco pontual (uma pauta) que congrega diferentes grupos de interesse e, para ser bem sucedido, deve minimizar a pauta de modo a acomodar todos os grupos participantes. Assim é o movimento feminista. Enfiar chantagem emocional no meio, como é esse papinho besta de sororidade, é autoritário. É anti-democrático.

Tudo isso que escrevi dói? Opa, se dói! Ou vocês pensavam que ser adulto e fazer política como adulto era ser revoltadinho?

Cresçam.

Bianca Cardoso – Por que não transo sororidade

 

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