A semana passada uma amiga minha viveu um drama sério: seu pai, diabético e alcoólatra, foi internado com uma série de complicações, entre as quais disfunção hepática e renal e necrosamento do dedo, que teve que ser amputado. A história vem se arrastando há anos. Os médicos foram contundentes e disseram que se ele não parasse de beber, que as conseqüências seriam estas que aconteceram e a morte. No entanto, ele não para. Minha amiga vive uma mistura de dor pela expectativa da perda, medo, impotência e raiva – muita raiva.
O mês passado, meu pai fez o segundo exame de glicemia de jejum. O valor subiu em mais de 15 pontos em relação ao anterior, feito um mês e meio antes. Valores discretamente diabéticos, nada assustador. Ruim, mesmo, é a tendência da curva, de agravamento acentuado. Meu pai sempre comeu mal e foi sedentário. Nunca tomou nenhuma medida de cuidado com a saúde. Para isso, contou com minha mãe: era responsabilidade dela proporcionar uma mesa de refeição não apenas cheia de alimentos que satisfizessem seu paladar, como suprissem as necessidades nutricionais. Difícil era juntar uma coisa com a outra, mas também cabia a ela insistir, todos os dias, todas as refeições, para que ele agisse com bom-senso. Por décadas.
Agora, diabético, ele foi confrontado (por mim) com a informação de que não pode mais comer açúcar. Complicado, pois a fase imediatamente anterior a esta foi, naturalmente, a de agravamento da resistência à insulina e portanto fissuras insuportáveis por açúcar (“sugar cravings”). Às quais ele cedeu alegremente, consumindo algo que calculo em torno de 2000 calorias só em sacarose, entre barras de chocolate, sorvete e outras guloseimas.
Qual foi o comportamento diante da nova informação? Continuar com os hábitos, agora expondo à minha mãe um simulacro de dissimulação. O que é um “simulacro de dissimulação”? É fingir que faz escondido. Quem faz escondido faz escondido: ninguém descobre. Quem realmente quer fazer sexo sem que a esposa saiba, faz e ela vai morrer sem saber. Quem na verdade quer acabar com o casamento, chega em casa com manchas na roupa, cheiro da outra no corpo e um brinco estranho no bolso da calça.
Meu pai leva chocolate escondido para o escritório de modo que minha mãe SEMPRE veja. A semana passada, comprou um sorvete bem doce, arrancou o rótulo convencional, jogou de forma bem visível na superfície do lixo (para que ela encontrasse) e deixou o pote (muito conhecido, de sorvete convencional) no freezer. Quando ela o repreendeu, ele riu como uma criança sapeca e continuou a comer o sorvete.
O pai da minha filha era um fumante e sedentário ideológico, bebia pouco mas sistematicamente (todos os dias) e comia relativamente mal. Fazia brincadeiras agressivas com meus hábitos alimentares e atividade esportiva. Um dia, cheguei em casa e peguei-o encolhido na cama do quarto dele, quando ainda morava conosco. Era um infarto fulminante. Levei-o rapidamente ao hospital e fui informada de que ele escapou por pouco de morrer. Parte do miocárdio estava comprometida irreversivelmente. Naturalmente, deveria mudar hábitos gerais, incluindo parar de fumar e comer sem gordura e pouco sal.
Até que ele fosse definitivamente embora, tanto minha filha como eu sabíamos que ele fumava “escondido”. De vez em quando, uma de nós chegava em casa e o escutava pulando a janela do quarto. Só que não existe “fumar escondido” porque cigarro cheira. Eu sinto o cheiro de cigarro de quem anda na rua, há mais de 70m de onde estou agora.
Todas estas pessoas têm algo em comum: não apenas fazem algo que lhes faz mal, mas fazem e querem ser monitoradas. Querem que “o outro” cuide delas CONTANDO com sua sabotagem. É como se dissessem: “é sua obrigação cuidar de mim, prestar atenção em mim, garantir e meu bem-estar e vou fazer tudo para atrapalhar”.
Considerei classificar esse comportamento como infantil, mas isso é falso: a criança não sabota sadicamente a mãe. Sabota por não ter condições de avaliar racionalmente suas opções. Uma criança diabética fica revoltadíssima com a dieta imposta porque não é capaz de entender as bases da doença e nem de ter uma visão de longo prazo – crianças são imediatistas, não podem conceber o futuro longo.
De forma alguma eu critico quem opta por adotar um estilo de vida sabidamente letal. Conheci um cardiopata diagnosticado com uma desordem cardíaca congênita séria que fez isso. Era um homem apaixonado por o que hoje seria chamado de esportes de aventura, um sujeito que amava a vida intensa. Ao ser informado pelos médicos de que deveria mudar tudo isso, viver de forma muito moderada, sem tanta atividade e com alimentação e sono regrado, ele decidiu e informou os familiares: “decidi não mudar meu estilo de vida, de modo que esperem que eu tenha meu próximo infarto letal dentro de cerca de um ano.” Foi exatamente o que aconteceu e ele viveu e morreu feliz.
A história é cheia de exemplos de atletas diagnosticados com condições letais que preferem sua identidade intacta e morrer cedo do que prolongar vidas vegetativas. Esses, admiro profundamente.
Aqueles outros, os algozes sádicos de parentes e familiares obrigados a cuidar deles a despeito de sua permanente sabotagem, merecem minha irritação e ressentimento.
Marilia