A cadeira branca do Fernando (sobre Atibaia e o dia que nunca mais vou esquecer)

Dia 30 de novembro fui até o aeroporto de Congonhas, onde fui buscar o vice-presidente da WABDL (World Association of Benchers and Deadlifters) para América do Sul, Prof. Vilmar Oliveira. Uma semana antes eu havia sofrido um acidente e quebrado o nariz, depois disso fiquei um pouco debilitada, de modo que Vilmar se dispôs a me acompanhar até Atibaia, onde, no dia seguinte, aconteceria a Copa do Mundo de Supino da WABDL.

Chegamos e nos encontramos com os organizadores, Mauricio e sua equipe: Fernanda, Gracinha, Diego e outros. Como inacreditavelmente tudo estava em ordem e todos muito calmos (já competi muito – o dia anterior é sempre caótico e os organizadores insuportavelmente estressados), fomos comer. Em dia anterior a competição, eu procuro dar uma controlada no carboidrato para não inchar demais e otimizar meu índice Wilks. No entanto, tinha perdido tanto peso durante a semana, que seria desnecessário. Comi normalmente. Meu peso era de 54kg.

Passei uma noite de cão: a gripe que vinha se anunciando resolveu se manifestar com todo seu poder histamínico e eu não conseguia respirar. O nariz quebrado e tampado, a garganta inflamada, tudo errado e uma diarréia começando a aparecer. Quase não dormi.

Às 8h fui até o ginásio Elefantão me pesar. No caminho, pensei: “Atibaia é bonita, as pessoas são legais, passei por poucas e boas esse ano – vou me divertir e relaxar. Se não der para fazer algo bom, pelo menos eu aproveito”. Subi na balança e não deu outra: 53,4kg. Os organizadores me aconselharam a esperar porque o peso baixaria – era melhor eu competir na categoria até 52kg do que na até 56kg, com um peso ridículo desses.

Até a hora de subir no tablado, fui oito vezes ao banheiro, com diarréia. Não faço idéia com que peso realmente eu competi – menos de 52kg, certamente. A última ida ao banheiro foi quando Mauricio anunciou a abertura do campeonato, com 10 minutos para aquecimento.

Eu havia me concentrado, ouvindo Ramstein no meu ipod, parando toda hora para me esvaziar mais. Tentava manter o foco na música e mentalizar o movimento, mas no fundo tinha aquela dúvida cruel sobre um possível constrangimento se escapasse cocô durante o levantamento.

Colocamos a camisa – uma Titan F6 número 34, que normalmente é tão apertada que em 20 minutos interrompe a circulação do braço. Imediatamente as veias do antebraço ficam imensas. No sábado, estava sinceramente confortável. Quem conhece camisa de supino sabe que “conforto” não é compatível com esse equipamento. Meu deus: será que essa camisa vai dar algum suporte larga desse jeito?

Baixei a pedida – tinha combinado com Fernando (Canteli) que sairia de 90kg. Mas liguei para ele e expliquei a situação. Resolvemos sair de 85kg. Testei no aquecimento um peso de 80kg. Diego me passou a barra e Juliana observou. Olhei para Juliana, ela fez um movimento com a cabeça e disse: “instável”. E acrescentou, “mas talvez porque o peso esteja baixo”.

Ai meu deus. Juliana é muito técnica, confiei nela o evento todo para me observar. Sabia que ela falava o que eu precisava.

Então pedi ao Diego para me arrumar a cadeira branca. “Como assim?”

“Cadeira branca. É meu ritual. Eu sento de frente para o encosto e me concentro. Fernando me ensinou isso no primeiro campeonato onde fiz uma marca boa – nunca mais fiz diferente. Preciso de uma cadeira de plástico branca”.

Como eles são legais, ninguém questionou a esquisitisse. Arrumaram uma cadeira branca. Fiquei lá quieta esperando me chamarem. Quando fiz os 85kg, não fiz cocô e a Juliana me garantiu que o movimento saiu bem melhor, fiquei mais tranqüila. Voltei para minha cadeira branca.

Andrezão administrou minhas pedidas. A próxima era 90kg. Vinte pessoas no round, bom tempo para concentrar. O recorde mundial máster 1 era 88,5kg.

Fiz o movimento, Juliana me garantiu que saiu melhor que os 85kg e isso me garantiu o recorde mundial máster 1. Dever cumprido.

Quando saí do tablado, minha cadeira branca havia desaparecido. Surtei. “Minha cadeira branca! Onde está minha cadeira branca!” Géverson havia pego a cadeira branca para uma moça na mesa. Devo ter causado péssima impressão na hora, ele respondeu “calma, já devolvemos sua cadeira branca”, com uma cara cautelosa. Tentei consertar, explicar que era meu ritual, mas não sei se deu muito certo. Bom, fazer o que. Sentar na cadeira branca e concentrar.

O recorde mundial open era de 100kg. Mauricio estava com a tabela de recorde na mão. Chamou Vilmar e perguntou quanto era o incremento mínimo para garantir a quebra: meio quilo. Então Andrezão fez a pedida de 100,5kg.

Quando fui chamada à barra, apertei o cinto e senti o intestino fazendo grlrlgrlllrrr. Juliana na minha frente falando: “não para! Não importa o que aconteça continua empurrando aquela barra!”. E dentro da minha cabeça eu dizendo: “não pare: cague, mas não pare”. E me preparando psicologicamente para ignorar a merda e continuar empurrando a barra.

Bom, eu consegui as duas coisas: levantei o peso e NÃO fiz cocô (na hora). Comemorei, saí correndo para o banheiro, me aliviei e pronto. Ufa.

No round seguinte, Diego pediu que eu arrumasse uma cadeira branca para ele (a minha alguém já tinha pego). Fui até o bar e arrumei. Vi que outras pessoas queriam cadeiras também, mas ninguém pediu.

Achei aquilo engraçado. Será que daqui a dois anos vai ter um monte de supineiro pedindo cadeira branca? Será que vão saber que isso foi inventado do nada, em abril de 2007, pelo Fernando, porque não tinha mais nada por perto para ele me isolar da multidão que me fazia mal? Vai saber. Assim começam os rituais. Na origem, têm um por quê. Depois são apenas simbólicos de algo mais.

Esse dia em Atibaia vai ficar na minha memória por vários motivos. Era o dia em que tudo ia contra uma marca boa – e foi a melhor marca que já fiz, um dos melhores resultados internacionais já obtidos por uma levantadora brasileira (que eu saiba, nenhuma outra mulher basista quebrou algum recorde mundial open em nenhuma federação), um dos melhores ambientes em que já competi e o dia em que conheci pessoas que suspeito que ficarão na minha vida para sempre.

Tive meu corpo contra mim, mas minha mente e meus amigos a favor. Quem ganhou? Quem ganhou foi essa “outra força”, feita de foco, apoio, soma de desejos e intenções positivas e tudo de bom que o esporte saudável proporciona.

Mas tinha também a cadeira branca.

Será que eu faria o recorde sem a cadeira branca? Nunca vou saber e nunca vou testar.

 

Marilia

 

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