A pobreza argumentativa da “dependência de exercícios”

Marilia Coutinho
Outubro de 2007 (Originalmente publicado no “Portal do Ferro“)

Vivemos a era das “novas adições (ou dependências)”. Inicialmente, o conceito de dependência era aplicado a álcool e outras substâncias psico-ativas. Ao longo do tempo, outras categorias de comportamento compulsivo foram incorporadas: jogo, sexo, comida e, agora, recentemente, atividade física. Essa última categoria tem sofrido, na última década, vários desdobramentos, gerando as sub-categorias da “dismorfia muscular”, “vigorexia” e “dependência de fisiculturismo”.
Será que alguma destas dependências existe mesmo?

O conceito de Dependência

Eu acredito que estes desdobramentos recentes representam um abuso do conceito de dependência, beirando o ridículo. Para explorar essa hipótese, é importante revisar o próprio conceito. Goodman (1990) identificou dificuldades para operacionalizá-lo na teoria e prática da psiquiatria por falta de consenso em sua definição. Ele propôs a adoção de uma versão segundo a qual dependência fosse um comportamento que funcionasse tanto para produzir prazer como para proporcionar uma fuga de desconforto interno, num padrão caracterizado por:
1. fracasso recorrente em controlar o comportamento (impotência);
2. manutenção do comportamento a despeito das conseqüências negativas (“unmanageability” – descontrole, incapacidade de administrar).
No mesmo ano, Miele e colaboradores (2000) publicaram um trabalho comentando a maior abrangência do conceito de dependência química no DSM-III-R e ICD-10, manuais de referência diagnóstica em psiquiatria. Nessas acepções mais amplas, a definição não requer mais a existência de “tolerância” e “sintomas de abstinência”, dando maior ênfase aos aspectos de compulsividade. Dependência, desordens compulsivas e obsessivas se tornaram assim, bastante próximas e difíceis de distinguir.
Para complicar o quadro, existe o conceito de “abuso”. “Abuso” de uma substância é o uso excessivo da mesma ou o uso da mesma para fins outros que não aquele para o qual ela é destinada na medicina. Feingold e Rounsaville (1995) revisaram o emprego destes conceitos e concluíram que não há bases para uma distinção categórica entre abuso e dependência, estando os mesmos situados ao longo de um contínuum. Wideger e Smith (1994), na mesma linha, apontaram que esse é o continuum do descontrole sobre um comportamento.
No entanto, se abuso e dependência se referem a comportamentos descontrolados sobre o uso de uma substância psico-ativa, como aplicar o conceito de dependência a comportamentos que não envolvem o uso delas? Wiesbeck e Taschner (1993) comentaram a questão e apontaram alguns perigos. Para os autores, a aplicação não-crítica do conceito de dependência pode levar a uma “inflação de dependências” (provavelmente é o que observamos hoje). Nesse caso, o conceito perde seu poder preditivo e se torna cientificamente inútil. Alguns anos antes, Jaffe (1990) alertou para o perigo da “trivialização da dependência”, atitude intelectual na qual arrancar cabelos compulsivamente e o uso diário de heroína são colocados na mesma categoria, por exemplo. Para o autor, isso levaria a uma erosão do apoio público a políticas de intervenção sobre a dependência química, questão séria em saúde coletiva.
Aparentemente, o cerne da discussão, e provavelmente o que deveria ser o critério central para a identificação de uma dependência, é o fracasso nas tentativas de controle, ou seja: o indivíduo está involuntariamente comprometido com a “ativação psicotrópica” em questão (assumindo que possamos empregar o conceito de dependência fora do contexto do uso de substâncias exógenas).
O próximo passo para julgar a pertinência das “novas adições”, portanto, é explorar esse aspecto: em que medida a prática constante e de alta freqüência de atividade física é involuntária? Em que medida ela foge ao controle do indivíduo e, assim, prejudica outros aspectos de sua vida emocional, física e social?

Dependência da Atividade F ísica: Fato ou Ficção

Tendo explorado um pouco o conceito de dependência, podemos examinar o conceito de dependência de atividade física ou de exercícios. A idéia de que existe uma “dose excessiva” de exercícios que pode causar ou estar relacionada a comportamentos compulsivos e conseqüências negativas nasceu nos anos 70. Baekeland (1970) demonstrou que praticantes regulares de atividade física resistem fortemente a interromper sua rotina de exercícios e que sofrem alterações fisiológicas se privados dela (o que parece bastante intuitivo e disso não decorre logicamente que o comportamento esteja gerando conseqüências negativas, mas que sua ausência sim, como se sabe hoje).
Um pesquisador de bom senso, Glasser, cunhou o termo “positive addiction” para designar esse tipo de “dependência” (Glasser 1976), reconhecendo que existe, de fato, um padrão de adaptação fisiológica e psicológica, mas que não provocava conseqüências negativas ao praticante. Em 1979 veio a resposta: Morgan introduziu o termo “negative addiction”, para apontar especificamente para as conseqüências negativas da “dependência do exercício” (Morgan 1979). E foi isso que ficou. Ninguém mais fala de “positive addiction”.
Segundo De Coverley Veale (1987), a dependência de exercício poderia ser caracterizada pelos seguintes critérios:
1) estreitamento do repertório, levando a um padrão estereotipado de exercícios uma ou mais vezes por dia;
2) saliência do comportamento de praticar exercícios, dando prioridade sobre outras atividades, para que seja mantido o padrão de exercícios;
3) aumento na tolerância à quantidade e freqüência dos exercícios com o decorrer dos anos;
4) sintomas de abstinência relacionados a transtornos de humor (irritabilidade, depressão, ansiedade, etc.), quando interrompida a prática de exercícios;
5) alívio ou prevenção do aparecimento de síndrome de abstinência por meio da prática de mais exercícios;
6) consciência subjetiva da compulsão pela prática de exercícios;
7) rápida reinstalação dos padrões prévios de exercícios e sintomas de abstinência após um período sem prática de exercícios”.

Vamos por partes:

1) “estreitamento do repertório, levando a um padrão estereotipado de exercícios uma ou mais vezes por dia
A excelência é baseada na especialização: tudo que se faz bem é feito às expensas da diversificação. Assim é para tudo na vida. O bom especialista em reposição hormonal no climatério é especialista em hormônios femininos NO climatério, EM ginecologia, EM medicina.
O bom praticante de corrida treina técnica de passada, intervalo, explosão, faz periodização, respeita treino ondulatório… Nada disso é possível se ele praticar corrida, natação, vôlei e tênis.
Me pergunto que conseqüências negativas isso pode trazer ao praticante, exceto se ele gostar muito de outros esportes e ficar frustrado por não ter tempo de se dedicar a todos.

2) “saliência do comportamento de praticar exercícios, dando prioridade sobre outras atividades, para que seja mantido o padrão de exercícios
Às vezes o trabalho é mais divertido, às vezes a atividade física, às vezes um hobby qualquer. O que der mais prazer terá saliência e receberá prioridade na ordem de relevância para o indivíduo. Exceto se isso levar o indivíduo a perder seu emprego e se tornar disfuncional, não há base para caracterizar essa priorização como negativa ou patológica.

3) “aumento na tolerância à quantidade e freqüência dos exercícios com o decorrer dos anos
Isso se chama “condicionamento”. Infelizmente os autores não conhecem fisiologia do exercício.

4) “sintomas de abstinência relacionados a transtornos de humor (irritabilidade, depressão, ansiedade, etc.), quando interrompida a prática de exercícios
Vários estudos demonstram a influência dos exercícios físicos na produção de serotonina e dopamina. Esse efeito é altamente benéfico. Forçando um pouco a barra, podemos até pensar que seria a restauração do padrão “original”, antes da introdução dos recursos tecnológicos que substituiram boa parte do esforço muscular, lá longe no paleolítico.
Sedentarismo já é algo reconhecidamente patológico. É quase que intuitivo pensar que suprimir uma atividade que regula a produção de serotonina e dopamina vai levar o indivíduo a subir parede.
Ainda não consigo ver onde isso é negativo.

5) “alívio ou prevenção do aparecimento de síndrome de abstinência por meio da prática de mais exercícios
Claro: a normalidade cerebral do praticante é restaurada e ele se sente bem novamente.

6) “consciência subjetiva da compulsão pela prática de exercícios
“Compulsão” é por conta de quem escreveu essa lista tendenciosa. Mas, naturalmente, todo praticante assíduo sabe que é e sabe que seu padrão difere da média da população. Em geral, sabe e se orgulha – ou seja: é ALTAMENTE voluntário e deliberado esse comportamento. Nunca vi um praticante de exercício reclamando: “puxa, preciso parar com isso, está me matando… vou tentar reduzir para quatro corridinhas por semana, a partir de amanhã…”.

7) “rápida reinstalação dos padrões prévios de exercícios e sintomas de abstinência após um período sem prática de exercícios
Que decorre da consciência anterior: o praticante sabe que faz bem para ele, que lhe dá prazer e mantém sua saúde – naturalmente faz tudo que puder para restaurar sua condição favorável.

Então, leitor: existe ou não existe dependência de exercícios?

Referências Bibliográficas:

Baekeland F. 1970. Exercise deprivation. Sleep and psychological reactions. Arch Gen Psychiatry; 22: 365-9

De Coverly Veale DMW. 1987. Exercise dependence. British Journal of Addiction 1987; 82:735–40.

Feingold A Rounsaville B. ,1995. Construct validity of the abuse-dependence distinction as measured by DSM-IV criteria for different psychoactive substances. Drug Alcohol Depend. Aug;39(2):99-109.

Glasser W. 1976. Exercise addiction. New York: Harper & Row.

Goodman A 1990. Addiction: definition and implications. Br J Addict. Nov;85(11):1403-8.

Jaffe JH. 1990. Trivializing dependence. Br J Addict. Nov;85(11):1425-7; discussion 1429-31.

Miele GM, Carpenter KM, Smith Cockerham M, Dietz Trautman K, Blaine J, Hasin DS. 2000. Concurrent and predictive validity of the Substance Dependence Severity Scale (SDSS). Drug Alcohol Depend. 2000 Apr 1;59(1):77-88.

Morgan WP. 1979. Negative addiction in runners. Phys Sports Med;7:57–70

Widiger TASmith GT. 1994. Substance use disorder: abuse, dependence and dyscontrol. Addiction. Mar; 89(3):267-82

Wiesbeck GATaschner KL. 1993. [Comments on the definition of so-called “new addictions”], Versicherungsmedizin. Jun 1;45(3):82-5.

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