Feminista, sim: a falácia da agenda única e os nichos de ativismo – parte I

Uns dias atrás eu publiquei um artigo no meu blog sobre o famoso tema “Pró escolha”. Nos Estados Unidos, a principal cisão, no que diz respeito aos direitos reprodutivos, é apresentada à sociedade pela oposição “Pró escolha” versus “Pró vida”. Esta última expressão é bem manipulativa e tendenciosa. Foi cunhada pela direita cristã para apropriar-se da bandeira da “defesa da vida” em oposição “àqueles assassinos, a(o)s feministas”. Esta(e)s última(o)s seriam assassina(o)s por defender o direito de escolha das mulheres quanto à interrupção da gravidez. Daí “Pró escolha”.

Como feminista, eu sou “Pró escolha”, como descrevi resumidamente em meu artigo. De maneira nenhuma sou “Pró aborto”. Pelo contrário: sou contra o aborto. Acho aborto uma coisa horrorosa, um trauma quase insuportável a quem tem que se submeter a ele e causa de morte para muitas mulheres inocentes. Portanto, por motivos óbvios, sou contra o aborto. Sou a favor do direito das mulheres escolherem se darão ou não continuidade à sua gravidez, e, se, por motivos que não vêm ao caso aqui, escolherem não dar, possam realizar um aborto – essa coisa horrível – com legalidade e segurança. Defendo igualmente o direito das mulheres de serem defendidas contra as inúmeras pressões PRÓ-ABORTO na sociedade (companheiros e parceiros sexuais que não desejam ser pais, famílias, instituições de trabalho, o Estado pela sua ausência no suprimento de serviços como creche e apoio à saúde reprodutiva, etc). Pela lógica, portanto, como feminista que sou e sendo pró escolha, defendo o direito das mulheres à prevenção da gravidez indesejada, à ampla educação sobre os direitos das mulheres desde a infância (para que os meninos não cheguem à adolescência pressionando suas namoradas submissas a fazer sexo sem camisinha, como é o mais comum hoje em dia, principalmente nas comunidades carentes onde eu atuei), a legalização do aborto e apoio às mulheres que necessitarem dele, entre outras medidas.

Comecei pelo tema mais polêmico da agenda feminista para ilustrar meu ponto neste artigo: o feminismo não é ideologicamente unificado e muito menos monopólio de um partido ou outro. Tenho horror ao PSTU, partido dentro do qual eu fui inclusive estuprada aos 16  anos, mas defendo o direito de suas militantes a expressar seu ponto de vista (sectário) sobre o que quer que seja, inclusive o aborto. No entanto, elas não representam o feminismo. Nem elas, nem a Eleonora Menecucci, que acha o aborto “uma coisa linda”, nem eu. Ninguém representa o feminismo quanto a esta agenda. A defesa da descriminalização do aborto é apenas um pedaço de um elemento mais amplo, este sim consensual, do feminismo, que é o direito de auto-determinação das mulheres.

O feminismo é a postura política que:

  1. Reconhece que há disparidade em concessão social, reconhecimento e respeito a direitos fundamentais no que diz respeito aos dois sexos e aos gêneros não dominantes no mundo todo;
  2. Reconhece que a disparidade acima se reflete num déficit de direitos de certos grupos que se constituem em referência à condição feminina (pessoas nascidas como mulheres ou que escolhem sê-lo);
  3. Adota uma postura em favor da equidade nos quesitos acima;
  4. Defende a auto-determinação das mulheres (biologicamente nascidas como tais e as que escolhem sê-lo) não em oposição ao correspondente direito dos homens, mas para igualá-los;

Só isso. É possível ser feminista e não ser:

  1. Membro de uma organização de esquerda;
  2. Defensora da concepção de aborto como “simples como uma extração dentária”;
  3. Ateísta;
  4. Defensor da idéia de que prostituição é apenas uma profissão como outra qualquer;

Já pensou que uma pessoa pode defender todos aqueles princípios ali em cima, que realmente caracterizam o feminismo, e ser, por exemplo, espírita? E portanto tenha uma rejeição absoluta ao aborto? Esta pessoa pode defender o direito legal ao aborto pelos motivos associados aos princípios, mas jamais compartilhará da visão de que aborto é uma coisa inócua, de que o feto é uma verruga e outras perspectivas que questionam algo muito caro aos espíritas, que é o status do feto como portador de direitos intrínsecos.

Não é o meu caso, como não é o meu caso achar que o feto é uma verruga extraível.

Esta é uma ilustração do meu argumento de que a adesão ao feminismo de maneira nenhuma implica a adesão a outras agendas.

Isto posto, é preciso entender que sem uma perspectiva ecumênica e inclusiva, que admita uma frente mundial pelo avanço da causa feminista, não chegaremos muito longe.

(…. continua, não perca os próximos capítulos)

 

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