Teorias das interações ecológicas aplicadas ao esporte

Voltei do Rio de Janeiro, onde participei do Campeonato Carioca de Levantamentos Básicos, organizado pela CONBRAFA (Confederação Brasileira dos Atletas de Força) há alguns dias (foi dia 26 de maio). Ressaca total, incluindo uma lesão não tão simples: osteólise do levantador de peso e inflamação da inserção do bíceps e peitoral. Por que ressaca agora? O paulista de supino foi sem ressaca, no Rio fiz minhas melhores marcas históricas (137,5 de agachamento, 82,5 de supino e 135 de terra) e tudo deu certo. Esse é o problema: tudo deu certo.

Saí sexta-feira de São Paulo de um ambiente de stress em todas as áreas: profissionalmente, luto contra a resistência do mercado a meus produtos inovativos, contra minha falta de bom networking, contra minha dificuldade em cobrar e estabelecer relações comerciais e contra parcerias assimétricas; afetivamente, foi o fim feio e trágico de um relacionamento importante; na família, minhas ambivalências com a saída de minha filha de casa; finalmente no esporte, mais diretamente relacionado ao evento em si, as piores decepções possíveis. No powerlifting existem inúmeras federações – no Brasil e no mundo. No Brasil, de longe a mais organizada e poderosa é a CBLB (Confederação Brasileira de Levantamentos Básicos), conhecida entre os íntimos como “o pessoal da IPF” (International Powerlifting Federation). Minha equipe é ligada a ela. Meu técnico e parceiro é diretor técnico dela. Desde o início da minha vida de atleta de powerlifting, só havia competido em eventos desta organização. Sempre colaborei, emprestei equipamentos, executei serviços e de maneira geral me coloquei à disposição deles. No entanto, nunca deixei de externalizar minhas severas críticas à organização mundial, nacional e paulista. Discordo de inúmeras regras – desde regras técnicas na execução dos movimentos, como o anti-fisiológico comando “press” no supino, até regras que refletem, do meu ponto de vista, aberta corrupção, como permitir apenas equipamentos cujos fabricantes paguem taxas de inscrição e anuais à IPF, além de proibir logos de patrocinadores que não sejam deles ou cobrar por isso. Estes são apenas exemplos – tenho uma lista de discordâncias. E talvez a pior seja o comportamento institucional da organização, seja codificado em “bylaws” (estatutos) ou não. Do ponto de vista estatutário, o item 14.9, mediante o qual qualquer atleta que participe de eventos internacionais de outras federações é punido com suspensão, é no mínimo fascista. Do ponto de vista do comportamento, a IPF, pelo menos no Brasil, instalou um ambiente de hostilidade e perseguição aos atletas. Se a IPF fosse a única federação, minha previsão seria que o supino brasileiro seria aniquilado, pois praticantes inexperientes são literalmente massacrados em competições, com um bombardeio de exigências excessivas e agressivas. Finalmente, externalizei veementemente e com argumentação racional minha oposição à política de anti-doping.

Pois bem, recentemente, instalou-se um clima de verdadeira “caça às bruxas” – e a expressão, aplicada a esse contexto, nem é minha. Todos sabem que eu utilizo mesterolona (proviron) como tratamento para minha desordem bipolar, depois de ter consumido todos os medicamentos específicos disponíveis no mercado brasileiro e americano, sem sucesso. Mesterolona foi e é um sucesso, mas como seu uso psiquiátrico não é descrito na patente original, não é possível conseguir uma liberação junto à WADA (World Anti Doping Association) para competir sob tratamento. Tentei, fui honesta, e sempre abri o jogo.

No entanto, na atual caça às bruxas, fui explicitamente avisada de que a IPF internacional está pressionando por resultados positivos e que a IPF local está buscando um “bode expiatório” (sic.). No aviso, fui aconselhada a não mais competir. Considero isso uma ameaça nada velada.

Membros da federação paulista que antes agiam publicamente como amigos, com comportamento supostamente companheiro, hoje me agridem, me enviam mensagens com conteúdo hostil e, em competição, me tratam mal. A ponto de se recusar a me cumprimentar em rodas de conhecidos, causando constrangimento.

Os momentos de inscrição e pesagem, nestes campeonatos, é cheio de tensão. Pessoas correndo em esteiras, cuspindo ou chorando porque a balança não correspondeu à da academia ou das farmácias – isso é regra e o stress começa aí. O início da inscrição pode atrasar, mas mobiliza todos em angústia, pois não se sabe quando acaba e o atleta pode ser excluído por não ter percebido o fechamento da mesa. Idem para a pesagem.

Educados nesta atmosfera de animosidade, a luta por ganhar “fora do tablado” acaba dominando o espetáculo no tablado. O “diz que diz”, a luta contra os cronômetros de regras e a inflexibilidade com qualquer item. Uma camiseta um pouco mais aberta, um cinto um pouco maior, tudo é motivo de tensão.

Não é a toa que voltar de Itu foi um alívio: cumpri minha missão (e mais uma vez repito, graças ao Fernando Cantelli, que me protegeu do ambiente de hostilidade em volta), fiz minhas marcas, mas graças a deus fui embora, sem saudades da atitude de disputa com ódio que presenciei no último round.

Uma semana depois – uma semana de fofoca, pressão e terrorismo em cima de mim – desembarquei no Santos Dumont. Peguei um táxi e fui encontrar meu grande amigo Vitz no Clube Militar, onde o Luiz também dá aula. Comi comida de verdade, falamos besteira, falamos coisa séria, falamos sobre técnica e biomecânica – minhas grandes paixões – e depois ele me deixou num pequeno hotel no centro, onde dormi bem e acordei cedo, preocupada com meu peso (afinal, fui educada nesse clima de terror com peso). Dei mil voltas, não tomei água, me pesei inúmeras vezes e esperei Vitz e Bianca virem me pegar. Bianca é fisioterapeuta e nosso anjo da guarda (e também namorada do Vitz): nos fotografou a todos, nos hidratou (pois às vezes esquecemos de beber água), nos alimentou e teve paciência para nos agüentar um dia inteiro numa atividade no mínimo estranha para os de fora.

Cheguei no Boqueirão cedo, meu peso estava baixíssimo, fiz minha inscrição com toda a tranqüilidade com a Monique, mais uma dessas pessoas que funciona como elemento “anti-stress” em qualquer ambiente e comi um monte de besteira. Chegaram Wolney e Cátia, a quem eu não via há tempos. Wolney é essa figura paternal, generosa e protetora. Perto dele, é impossível se sentir mal. No lugar do ar ameaçador ao qual eu havia me habituado, hospitalidade e tolerância. Cátia é minha amiga guerreira, de uma força interna e externa que nunca vi.

Depois chegaram Deni, meu amigo de falar as coisas mais hilárias e as mais sérias todos os dias, o grande Dragos Stanica e tantas outras pessoas que admiro e de quem gosto. Entre elas, Caramello – a figura polêmica do powerlifting brasileiro.

A competição transcorreu com a maior tranqüilidade. Começou ao meio dia e terminou às 20h, sem atraso e sem frescura. O cronômetro não era uma guilhotina, mas só saquei isso na minha primeira pedida de agachamento. Só havia o Vitz para enfaixar a nós, que precisamos ser enfaixados (alguns atletas homens se enfaixam sozinhos). Naturalmente, o árbitro teve o bom-senso de não anular pedidas por pequenos atrasos devido à demora em acabar de enfaixar atletas, pois seria idiota. Isso atrasou a competição? Não. A camiseta podia ser em V, colorida ou estampada, pois esses detalhes não tem a menor influência no movimento, não conferem vantagem a nenhum atleta e submeta-las a codificação por regras é buscar pelo em ovo. A camisa de supino podia ficar por cima do macaquinho, o que, aliás, é muito mais prático. Não havia a preocupação com as variações individuais entre árbitros em sua contagem da “parada visível no peito” para só então gritar “sobe” (o famoso comando “press”, que introduziu o cumulo da subjetividade no supino, sendo que alguns árbitros demoram 4 segundos para dar o comando e outros meio segundo). Não foi à toa que tive um bom desempenho.

Saímos, comemos pizza e eu dormi na casa da Cátia, onde conversamos até duas da manhã e rimos muito.

Pensei muito no Fernando Cantelli e nas nossas discussões sobre estilos. Sim, eu busco um estilo sereno e concentrado. Mas há um elemento adicional à necessidade deste estilo: no meu caso, talvez pelo meu déficit de atenção ou variação de humor, ambientes hostis são inteiramente contra-producentes. Ou eu aprendo a me concentrar e me isolar, ou nunca conseguirei ter desempenho em campeonatos hostis da IPF. No campeonato carioca, da CONBRAFA, não precisei do ritual de isolamento. Fiquei quieta antes das execuções, mas não havia uma vibração negativa, uma guerra sussurrada no ar da qual me proteger.

Quando voltei a São Paulo, tudo estava pior. O clima de terror, às vésperas do grande Campeonato Brasileiro de Powerlifting, da IPF, seletivo para o Sul-americano e Pan-americano, está no seu auge. Pessoas tentando de tudo para sabotar uns aos outros, boatos aterrorizantes e a caça às bruxas a um nível para mim insuportável.

Então, num treino, minha lesão se manifestou tão forte que não suportei, tomei codeína e fui procurar meu guru e ortopedista Fabiano Rebouças. Foi quase um alívio ouvir o diagnóstico e, embora Fabiano não tenha me proibido de competir, ter em mente que essa lesão pode me tirar do Brasileiro.

Meu tesão por esse campeonato é um número negativo, pois estou indo para perder. Não posso ficar entre as melhores atletas, pois se ficar cairei no sorteio do anti-doping. Terei que voluntariamente executar uma carga baixa em um dos levantamentos para reduzir meu coeficiente Wilks. Isso não é contra o livro de regras, e é o que farei. Há uma semana, Gilson me perguntou se eu me importava em ser convocada apenas como máster, e não open como seria meu direito, já que ganhei o Paulista em todas as categorias. Nem parei de treinar para responder: “de forma alguma, não estou nem aí, por mim nem iria – me inscreva onde você quiser”.

Com toda essa ressaca na cabeça, fiquei pensando em minha insistente defesa, desde sempre, do esporte competitivo para crianças (Choramingação é um saco – viva o esporte competitivo). Sempre achei que o esporte, com seu procedimento meritocrático, prepara a criança para um mundo concorrencial de forma ética, com a agressividade certa e controlada, resistência à frustração e atitude de competição saudável.

Mas o que seria a “competição saudável”? Certamente não o que tenho visto. Então fiquei pensando no conceito técnico e ecológico de competição. As relações ecológicas são classificadas em várias categorias: a predação, a competição, o parasitismo, o comensalismo e por fim a simbiose. Vão de um extremo de efeito negativo de uma população/espécie/indivíduo em relação a outro a um extremo de cooperação. Todas elas são observadas na natureza. Quanto mais recente, evolutivamente, o contato entre comunidades (conjuntos de espécies), mais predominam as relações negativas e ocorrem rápidos re-arranjos, quase sempre com extinções de espécies. O encontro de continentes, por exemplo, levou a extinções em massa por efeito de predação e competição. Acredita-se que o parasitismo, por sua vez, é resultado de uma adaptação mais longa entre as espécies, também chamada de “co-evolução”. Não é do interesse do parasita matar seu hospedeiro, que é fonte de sua sobrevivência. O extremo positivo, a simbiose (exemplos: liquens, produtos da simbiose entre fungos e algas, ou formigueiros de formigas cortadeiras, onde ocorre a simbiose entre formigas e o fungo que as alimenta), é produto de um longo processo co-evolutivo. Isso levou alguns autores a postular que ecossistemas mais “maduros” devem exibir predominância de relações “positivas”. Isso NÃO é consensual entre os especialistas, de forma alguma, e, a meu ver, pode refletir uma agenda ética. De uma certa forma, muitos discursos teóricos na ciência projetam visões de sociedade.

Eu particularmente gosto dessa interpretação como metáfora social. É certamente mais maduro cooperar do que predar ou competir no sentido de eliminar seu concorrente. Assim, a “competição saudável” do esporte seria muito menos “competição”, no sentido estrito, do que cooperação. É uma atividade concorrencial que beneficia a todos, mesmo aqueles que não levam a medalha de ouro ou o troféu de melhor atleta.

É assim que eu vejo a coisa, enquanto o “pessoal da IPF” que me aterroriza com sua caça às bruxas é mais para o “neo-darwinismo tacanho” (versão leiga do neo-darwinismo), onde competir é eliminar o outro.

 

Marilia

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