Como se expressa a alienação corporal? Como podemos identificar sua expressão na vida social?
Existem várias manifestações patológicas da alienação corporal:
– desordens alimentares
– insatisfação com a própria imagem / desordens dismórficas
– sedentarismo (sim, considero sedentarismo um comportamento patológico)
– desordens sexuais
– fracasso na adesão a programas de atividade física
– fracasso na adesão a tratamentos de saúde que requerem pro-atividade
1. Desordens alimentares
Ao contrário da literatura mainstream, eu faço uma distinção entre os comportamentos voluntários e os involuntários neste caso. Existe uma epidemia de sobre-alimentação na sociedade não necessariamente associada a um comportamento patológico, e sim como resultado da vitimização do indivíduo pouco informado ou pobre pela indústria alimentícia. Esse indivíduo se sobre-alimenta INVOLUNTARIAMENTE, já que as doses de alimento nas refeições suficientes para satisfazê-lo têm um conteúdo calórico muito superior ao seu consumo fisiológico e ele não sabe disso. É o caso do pobre ou indivíduo sem acesso a informação que consome fast food e ingere mais de 1500 calorias apenas em sanduíche e refrigerante.
A sobre-alimentação VOLUNTÁRIA é outro caso: é o comportamento dos indivíduos que têm acesso a informação suficiente para muni-lo com ferramentas decisórias e que DECIDE fazer superavit calórico. Ele sabe que as consequências serão aumento de peso ou manutenção de seu sobre-peso, e ainda assim mantém o mesmo comportamento.
A sub-alimentação voluntária está envolvida nas causas das desordens dismórficas da anorexia e bulimia, enquanto a involuntária ocorre em situações de fome endêmica.
“Overeating” (sobre-alimentação) e suas consequências, o sobre-peso e a obesidade, a anoexia e a bulimia são desordens de causas complexas, mas têm algo em comum: o corpo é externo ao portador. Ele DECIDE não atender a uma demanda fisiológica porque a demanda é de “alguém mais”, e não dele. Não é “ele” que ganhará excesso de gordura ou perderá peso através do comportamento, e sim “seu corpo”. O corpo é um fardo, um problema, algo inclusive odiado, porque rebelde e fora de controle.
2. Insatisfação com a própria imagem / desordens dismórficas
Nesse ponto é importante fazer uma observação: as desordens dismórficas apelidadas de “vigorexia”, “bodybuilding dependence” e “dismorfia muscular” estão excluidas deste ítem. Em outros textos, já justifiquei por que acredito que elas não existem e por que são falsas categorias criadas pela psiquiatria por um fracasso dos pesquisadores em compreender um comportamento socialmente partilhado e os códigos de uma cultura de praticantes esportivos. Portanto, não são desordens dismórficas.
As desordens dismórficas verdadeiras e as alimentares estão muito associadas. Estas são a sobre-alimentação/obesidade, anorexia e bulimia. Elas são caracterizadas por uma percepção exagerada, distorcida ou simplesmente ficcional da imagem corporal do indivíduo. A vítima se percebe excessivamente gorda ou magra, independente de indicadores objetivos como peso, dados relativos a composição corporal e input externo como opiniões alheias. É ingênuo questionar a relação desses indivíduos com o espelho, considerando que a interpretação de imagens não é um processo mecânico, e sim mediado por fenômenos subjetivos complexos. A vítima vê o que todos vemos, mas PERCEBE algo inteiramente diferente.
As causas dessas desordens são variadíssimas e complexas. No entanto, todas elas são caracterizadas por uma ruptura entre a interpretação de informação (quantitativa, visual e principalmente auto-percepção através de sinais internos ou auto-manipulação) sobre o corpo e a formação de uma imagem desse corpo. Isso é uma consequência direta dessa separação simbólica entre corpo e mente, chamada aqui de alienação corporal.
3. Sedentarismo
O sedentarismo é uma expressão patológica da alienação corporal das mais relevantes do ponto de vista epidemiológico. Calcula-se em cerca de 57% a mortalidade mundial associada a causas de risco relacionadas à inatividade física e inadequação nutricional. A adoção de modos de vida que suprimam a mobilidade é produto da interiorização em massa da alienação corporal. É uma condição em que o corpo é inibido em sua expressão mais básica, que é o movimento.
4. Desordens sexuais
As desordens sexuais são amplamente debatidas no mundo médico, acadêmico e mesmo na mídia leiga como produto de ideologias e religiões conservadoras. No entanto, esses mesmos componentes culturais integram um sistema mais abrangente de negação das expressões corporais básicas: a mobilidade, a sexualidade e a nutrição.
5. Fracasso na adesão a programas de atividade física e fracasso na adesão a tratamentos de saúde que requerem pro-atividade
Esse ítem na verdade é um só, embora as duas situações sejam bastante diferentes – uma lida com o corpo em relativa saúde, a outra com uma condição patológica. Em ambos os casos, o indivíduo adota uma postura de passividade e impotência, em que a responsabilidade sobre seu corpo é delegada a um “outro” (médico, educador físico, terapeuta, etc.). Essa recusa ou incapacidade em assumir responsabilidade sobre o próprio corpo é produto da alienação do mesmo.
Todas estas expressões são mais presentes entre as mulheres do que entre os homens. As expressões corporais básicas são muito mais fortemente reprimidas precocemente nas mulheres. Muito cedo na infância, as meninas são separadas dos meninos e sua mobilidade é restrita. A elas são oferecidas opções de atividade com um elenco muito menor de movimentos – em amplitude, velocidade, localização espacial, etc. Meninas brincam em áreas menores, no plano, com movimentos de pequena amplitude, potência e velocidade. Consequentemente, seu acervo motor será proporcionalmente reduzido. Consequentemente, sua consciência corporal será prejudicada. Além disso, valores negativos são associados à maior mobilidade entre as meninas – meninas são valorizadas por serem “quietas” e “controladas”.
A incidência da obesidade em mulheres é cerca de 10% superior do que em homens em quase todos os países industrializados. Estatísticas americanas mostram que a proporção de mulheres com anorexia nervosa, bulimia ou “binge eating disorder” é cinco vezes maior do que a dos homens. Outros estudos sugerem que apenas 5 a 10% dos portadores de anorexia ou bulimia sejam homens.
Por esses motivos – maior incidência de todas as desordens alimentares em mulheres – praticamente todos os programas voltados para desordens dismórficas têm como alvo as mulheres.
Pelos motivos já discutidos, o sedentarismo é muito mais significativo entre mulheres do que em homens. Uma pesquisa bastante criativa publicada em 1999 no American Journal of Public Health desenvolveu uma metodologia para quantificar o sedentarismo. Os resultados da aplicação da metodologia numa amostra da população adulta da cidade de Genebra mostrou que 79.5% dos homens e 87.2% das mulheres eram sedentários.
A pro-atividade em programas de atividade física é baixíssima em mulheres e este é um fato do dia a dia do professor de educação física. Enquanto os homens, de todas as idades, se esforçam minimamente para ter alguma autonomia nesses programas, as mulheres permanecem em grande parte numa atitude passiva.
Em todas as manifestações da alienação corporal, portanto, a incidência é maior em mulheres.
Marilia