Alguns leitores estranharão a expressão “pessoa atleta”. Em geral, refere-se a este grupo de indivíduos apenas como atletas – e assim o farei daqui para frente. O título, no entanto, chama atenção para o fato de que a condição de atleta confere uma identidade própria e irredutível. Assim como dizemos que a “pessoa indígena” ou a “pessoa adolescente” têm uma complexa construção de identidade, assim também a “pessoa atleta” constroi sua representação de si mesma em referência ao seu pertencimento ao esporte que lhe define.
Isso parace óbvio, mas não é. A maioria dos atletas teve o aterrorizante encontro com algum médico que levianamente comunicou a ele que jamais competiria novamente. Sabemos que na imensa maioria das vezes (não há um estudo sistemático para quantificar o erro) o médico estava errado. O atleta desafiou o prognóstico e voltou a competir. Um colega meu, strongman profissional nos Estados Unidos, sofreu uma cirurgia da coluna e o cirurgião lhe disse: “encontre um novo hobby”. Uma bailarina profissional sendo reabilitada por um amigo meu teve o prognóstico de que nunca mais dançaria na vida, dito com quase indiferença. Eu tive isso dito sem nenhuma indiferença, e sim com raiva e ódio, porque reagi e disse que eu faria qualquer coisa, tomaria qualquer coisa e voltaria ao tablado.
Por que nos dizem isso? Puro sadismo? Ignorância? Estupidez? Pode ser um pouco de tudo, mas antes de mais nada é uma falta de compreensão, pela sociedade como um todo, da qual o médico é uma parte, de que para o atleta de alto rendimento seu esporte não é um hobby, uma ocupação temporária e nem mesmo um “serviço”: é a essência de sua existência. É a maneira como o indivíduo concebe a si mesmo e as suas relações com o mundo, as outras pessoas e as ideias. Isso se chama identidade.
Identidade não vem de fábrica e nem de inspiração divina. Identidade é construída de forma multi-fatorial, processo dinâmico no tempo e sincronicamente, onde interagem a história pessoal e cultural, as expectativas construidas ao longo dela, as interações fortuitas que qualquer trajetória humana proporciona e o tão controvertido talento. A identidade é uma invenção – tanto pessoal, quanto coletiva.
É dentro desta perspectiva que discutiremos a lesão esportiva.
No período imediatamente recente, quatro lesões catastróficas em atletas me marcaram a ponto de promover esse mergulho no mundo escuro da perda ou quase perda da identidade. A primeira foi a de Kevin Ogar, atleta de crossfit, a segunda de Lais Souza, esquiadora, a terceira de Brandon Lilly, powerlifter, e a quarta a minha. Discutirei as três primeiras e a minha, da qual ainda me recupero, por último.
Kevin Ogar, um dos competidores de elite da Crossfit mundial, sofreu um acidente dia 11 de janeiro enquanto executava um arranco. A barra caiu da posição baixa do arranco, com braços estirados, no meio da coluna do atleta. O resultado foi uma lesão irreversível da coluna e da medula, resultando em paraplegia. Aparentemente, Ogar tem exibido uma atitude positiva, sorridente, e milhares de dólares já foram arrecadados entre praticantes e apreciadores de crossfit mundo afora para apoiá-lo. Mas quem é Kevin Ogar agora?
Figura 1 (Kevin Ogar)
Lais Souza, ex-ginasta e esquiadora, sofreu uma queda quando esquiava dia 27 de janeiro. Lais se preparava para os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi e se chocou com uma árvore esquiando.
O acidente causou um deslocamento da terceira vértebra cervical. Lais foi operada e as notícias subsequentes à cirurgia eram as piores possíveis: tetraplégica, provavelmente presa a um sistema artificial de respiração pela vida inteira e incapaz da falar. Hoje as notícias já comunicam que um tubo fino introzido na traquéia operada de Lais permitiu que se compreendesse algumas palavras dela. Diz-se também que um marca-passo no diafragma pode permitir que ela respire.
Lais não “gostava de esportes”, como o ignorante médico que me atendeu sugeriu a mim: como todos os quatro casos aqui citados, Lais definia-se pelo seu fazer. Como ginasta, participou das Olimpíadas de Atenas, em 2004 e de Pequim, em 2008. Não pode participar da de Londres, em 2012, em função de uma lesão. Em seguida aceitou o convite da Confederação Brasileira de Desporteos de Neve e se tornou esquiadora. Como atletas têm uma alta transferência de competências, logo se tornou proficiente ao ponto de participar de jogos olímpicos novamente.
Quem é Lais agora?
Figura 2 (Lais Souza)
A resposta a esta perguna nos dois casos anteriores depende da capacidade e vontade destas pessoas em se re-inventar.
Brandon Lilly, powerlifter de elite, competia no LA Fit Expo, oranizado pela USPA, no dia 26 de janeiro, quando, num agachamento, colapsou sob uma barra carregada com 337kg (agachamento raw, sem faixa). O acidente causou ruptura nos tendões patelares e do quadríceps em ambas as pernas, ruptura de ligamento medial e menisco também em ambas, e na perna esquerda houve ruptura do ligamento anterior cruzado, tendão do femural e uma fratura completa na patela. Foram cinco horas e meia de cirurgia para reconstrução dos ligamentos, reparo dos tendões e prótese de patela. Todos, entre atletas e o próprio Brandon Lilly, estão seguros quanto à volta dele ao tablado sem perda de performance.
Figura 3 (Brandon Lilly)
Eu, Marilia, powerlifter de elite, campeã e recordista mundial por diversas federações, sofri uma lesão na região da L3/L4 durante a conexão aérea Miami-Las Vegas, rumo ao campeonato mundial da IPL. Com muita dor e muitos analgésicos opióides, consegui me pesar e competi, venci na categora absoluta, quebrei dois recordes mundiais open (absolutos) e quando cheguei no terceiro round, de terra, senti que estava no meu limite. Mesmo sim fiz a primeira pedida e garanti o título. Os dias subsquentes a um campeonato são altamente imunosupressivos. Provavelmente foi neste período que contraí o que veio a ser a doença mais grave da minha vida: uma discite bacteriana. Trata-se de uma infecção na coluna vertebral que destroi discos e parcialmente os ossos das vértebras (osteólise). Quando, dois meses depois disso, fui à emergência hospitalar com dor insuportável e febre, fui muito bem tratada pela equipe de dor, pela equipe de infectologia e, a despeito de ser um dos melhores hospitais do país, só tive maus tratos e incompetência da ortopedia até que a equipe de psiquiatria foi trazida ao caso e controlou a relação com os ortopedistas ávidos por colocar um fim na minha carreira esportiva.
No dia em que um deles, devidamente expulso do caso, gritou comigo dizendo que eu jamais levantaria peso novamente, que ficaria seis meses imobilizada com uma cânula na carótida para administração intra-venosa de antibiótico, eu até consegui reagir. No entanto, quando ele se retirou do meu quarto, eu respondi a pergunta que fiz antes sobre Ogar e Lais: quem é Marilia se ela não puder levantar mais peso? Ninguém.
Figura 4 (Marilia Coutinho)
Nada ocuparia este lugar. Por uma hora e pouco só o que me ocorria era uma enorme vontade de morrer. Até que outras equipes entraram e me asseguraram a volta ao tablado. Por um tempo tudo era hostil e aterrorizante. Eu me encolhia, tentando me agarrar à minha identidade que estava sob risco de ser usurpada ali.
Boa parte das pessoas morre apenas uma vez. Uma parte, no entanto, morre duas ou mais: a destruição da estrutura identitária de uma pessoa pode levar à morte, em geral por suicídio. Pode levar também a um renascimento. Este renascimento é a re-invenção pessoal. É um esforço tão mais hercúleo quanto mais madura for a pessoa e mais visceral sua relação com a estrutura identitária anterior.
Citei quatro exemplos dramáticos, onde, em dois casos, a identidade esportiva foi catastroficamente destruida e, nos outros dois, foi seriamente ameaçada.
Respondo por mim e por outros atletas: quanto mais ameaçada é esta identidade, mais agressivos somos na volta à condição competitiva, frequentemente superando nossa performance anterior.
Toda lesão séria faz com que o atleta percorra uma série de etapas. A primeira é o choque, que dura pouco. A segunda pode ser ou a negação ou o catastrofismo: ou o atleta se recusa a aceitar a gravidade ou mesmo ocorrência da lesão, ou ele leva suas consequências ao extremo. Em seguida vêm uma sequência de emoções que se alternam, como frustração, revolta, raiva e finalmente depressão. Existe um depois, seja na recuperação completa ou na re-invenção de uma identidade. É a fase da redescoberta, da reconstrução da motivação esportiva ou de vida. Neste depois, pode não haver redescoberta e teremos, então, um deprimido crônico.
A lesão é o evento mais duro da vida de um atleta porque é o único que ataca diretamente sua identidade. Um atleta, no entanto, é um guerreiro e a luta para preservação ou recuperação desta identidade é uma luta até a morte.
Leia mais:
Tracey, Jill (2003) ‘The Emotional Response to the Injury and Rehabilitation Process’, Journal of Applied Sport Psychology, 15: 4, 279 — 293
Loss of identity linked to suicide. Belfast Telegraph.co.uk. 20 SEPTEMBER 2012. http://www.belfasttelegraph.co.uk/news/local-national/republic-of-ireland/loss-of-identity-linked-to-suicide-28865719.html
Johnston, M. Identity loss tied to Maori suicide. The New Zeland Herald. Monday Jan 23, 2006
Durkheim, E. Suicide: A Study in Sociology. Taylor & Francis, 21/02/2002