Não, não precisa ter lido “o que é ideologia”, da Marilena Chauí para entender esse post. É simples: por “ideologia”, me refiro aqui, sem maiores elucubrações, a todos aqueles atos, comportamentos, julgamentos e observações contextualizados em uma concepção (que pode ser mais ou menos consciente) de como é ou deve ser organizada a sociedade. Não é muito complicado: do mesmo jeito que Kuhn insistiu que não existem termos observacionalmente neutros, que tudo que nomeamos e observamos é em referência ao um sistema de significados, boa parte dos julgamentos e comportamentos que temos tem como referência um modelo de sociedade. Tem coisas mais e coisas menos óbvias. Se alguém fala para você “odeio carros – para mim, todos deviam sumir”. Provavelmente essa pessoa tem em mente uma sociedade futura (desejo de transformação) onde o transporte coletivo seja eficiente a ponto de garantir vidas funcionais sem a necessidade do veículo individual, e essa é bem diferente de quase todas as sociedades industriais que conhecemos. Quando alguém, num hospital, é recebido por um homem negro vestido de branco com estetoscópio no pescoço e diz “mas eu gostaria de falar com o médico”, essa pessoa está assumindo que ele só pode ser o enfermeiro, já que é negro. Negros, no Brasil, tem ocupado de forma estatísticamente comprovada cargos de menor hierarquia e remuneração que brancos. O paciente em questão pode não discriminar o individuo negro vestido de branco, mas tem um modelo (presente) na cabeça de uma sociedade discriminatória e estratificada, de modo que concluiu que o homem era o enfermeiro.
Há muito tempo venho pincelando considerações sobre estética e ideologia. O produto mais acabado destas reflexões é, acredito, minha interpretação sobre a discriminação contra a estética musculosa e seu fundamento histórico (Síntese das idéias sobre preconceito muscular). Escrevi algo em tom jocoso sobre o gosto por barbies (Barbies ; Sensual e vulgar) e também algumas considerações mais sérias sobre a morte das modelos anoréxicas (A Supermodel gaúcha ; Mais uma modelo morre de anorexia).
Todas estas considerações se referiram à construção social de “padrões estéticos” e se fundamentaram em tendências “macro” – processos históricos, dinâmicas da indústria de modas, grandes elementos estruturais da economia e da sociedade.
O que quero tratar aqui é o ponto em que a AÇÃO individual – entendida de forma ampla, como comportamento ou atitude – implica, necessária e irrevogavelmente, uma adesão ideológica ou uma reivindicação emocional de conteúdo complexo. O julgamento ou escolha estética são, assim, discursos articulados, reivindicações, ações culturais ou políticas.
Para isso, vou emprestar alguns enunciados de meu amigo P., um inteligente e criativo jovem estudante universitário de 25 anos.
P. desvia de uma grande maioria de homens que adere sem admitir a padrões estéticos machistas e discriminatórios. Embora não tenha escrito nenhum tratado no assunto, jogou, a partir de sua experiência pessoal, uma luz importante sobre o assunto. Num certo ponto, me disse que tinha uma grande atração por essas “nerdzinhas bem frágeis”. O que ele disse é tão candidamente preciso, mas ao mesmo tempo melancólico, que achei um momento de raro insight. P. é um estudante universitário numa grande universidade federal. É um jovem inteligente e culto. Onde é que é mais provável encontrar uma parceira que provoque nele um desejo masculino de aproximação (atenção: não um desejo copulatório, um desejo de aproximação de uma mulher)? Na biblioteca, claro! São as jovens com a cara enfiada em Habermas e que falam sobre os jogos de significado de Wittgenstein que podem entreter com ele alguma interação propriamente humana. Na nossa sociedade, por motivos que já analisei, reina a alienação corporal, de modo que infelizmente esta geração, como as duas anteriores e a minha, são vítimas de uma violenta rejeição de seus próprios corpos. Assim, essas jovens interessantes, são magrinhas e frágeis, pois não “tem tempo” para bobagens corporais – tem muito livro para ler, muito filme de arte para assistir, muita cerveja para tomar no boteco falando sobre mundos futuros ou imaginários, muito sonho para sonhar só com a mente. Estas são as mulheres interessantes para P., que é um jovem culto e interessado no mundo. Sua opção estética reflete um desejo real de construir relações férteis com mulheres (ele é heterossexual).
Mas ele vive uma contradição: ele mesmo, ainda não sei como, superou sua condição de alienação corporal. Ele se observa, pratica e estuda profundamente treinamento de força (é uma das pessoas que mais conhece as escolas derivadas do H.I.T. dos irmãos Mentzer), tem prazer em viver uma condição mais integrada (sendo um corpo, e não carregando-o como fardo de uma mente hipertrofiada). E aí, como jeito, me perguntou: “Marilia, com todo respeito, quantas mulheres com o seu shape você conhece que tenham mais de 5 neurônios ligados ao mesmo tempo?” Na hora lembrei só de uma (mas tem mais), que de fato utiliza sua competência intelectual profissionalmente: minha amiga e campeã sul-americana de powerlifting Cátia Portilho. Mostrei a ele o site dela (www.catiaportilho.com ), onde há uma galeria de fotos.
Cátia é uma mulher forte e belíssima, loira, feminina, usa maquiagem, unhas feitas, mas não tem nada de frágil ou “fofinha”. P. examinou as fotos, diagnosticou tratar-se de uma mulher “maravilhosa” e pontuou:
“Homens se sentem inseguros perto de mulheres maravilhosas, é natural…. Pense da seguinte forma, você sempre se relaciona com a melhor opção que tem…. Para um macho dominante é meio complicado estar perto de uma mulher que passa a impressão que a qualquer momento pode conseguir algo melhor que você! Se ela é bonita mas é burra, ainda dá pra maioria levar…. Mas quando a mulher é inteligente o cara se assusta mesmo! “PQP! Ela pensa, como é que eu vou enrolar essa daí?” (isso é a transcrição de uma conversa informal, e não um texto de P.).
Mais uma vez, uma constatação melancólica: mesmo para os homens que conseguem ver beleza e atratividade em mulheres fortes, com expressão determinada e energética, com sensualidade agressiva e feminilidade assumida, a lógica concorrencial auto-refletida impede que se aproximem. O peso dos critérios competitivos impostos pelos inúmeros padrões convencionais (mais ou menos grana, mais ou menos altura, mais ou menos gordura, mais ou menos títulos, mais ou menos nariz, etc. etc. infindavelmente) faz com que isso não seja possível. Infelizmente, ainda estamos longe do momento em que todos se vejam como produto de uma combinação única e incomensurável de características, que nos faz essencialmente incomparáveis uns com os outros. Não há melhores ou piores…
E então chegamos na escolha mais conservadora baseada em estética feminina: a da Barbie, Penélope e suas variações. A mulher de cabelos loiros fake, alisados, bem penteados, longos, ostentando um sorriso de expressão pouco inteligente, olhar “meigo” (a palavra “meigo” me causa ânsia de vômito), de preferência com seios siliconados e roupas “convencionalmente ousadas”.
Diagnóstico do P.: “A burrice pode ser levemente atraente se você considerar que pode dar uma rapidinha, uns tapas na bunda e não precisa ficar deitado do lado dela conversando, nem ficar abraçado depois… Acho que é uma espécie de terceirização da masturbação…. (perguntei: “como uma boneca inflável?”). Sendo que a boneca é uma situação mais chata porque mais cedo ou mais tarde tu vai ter que lavá-la, né?”
Lendo este brilhante parágrafo de P., acho que o melhor que um apreciador de Barbies pode fazer é enfiar a cabeça na privada e puxar a descarga. Para que possam fazer isso com tranqüilidade e voltar ao texto, vamos fazer um parêntesis e observar as seguintes imagens:
Este é o “default” de beleza feminina do pós-guerra. Cabelos em geral loiros (mas não muito), curtos (mas não muito), muito bem penteados, sem fios soltos – sem nada solto. Corpos magros, porem seios abundantes, bem cobertos por vestidos discretos e conservadores, com babados que ilustram a fragilidade e delicadeza. Eletrodomésticos em volta, jóias ou bijouterias de pequeno porte, maquiagem correta (vermelho na boca e unhas, cores convencionais), saias longas. A expressão facial comunica satisfação com seu “lugar” natural de suporte na infra-estrutura doméstica. Nenhuma indagação, excitação ou esperteza no olhar – a única imagem de dúvida claramente se refere ao problema do número de ovos a ser acrescentado ao bolo. Fitinhas e florezinhas nas estampas completam um visual inofensivo, acolhedor e inteiramente submisso. Assim como as Barbies de hoje, são olhares “em branco” (“blank faces” – não há nada atrás, nenhum pensamento).
Abaixo, está a versão erotizada desta estética, materializada integralmente em Marilyn Monroe:
Sumiram os babados, os decotes foram aumentados, a maquiagem exagerada e a expressão, de inocente e assexuada, se torna abertamente convidativa sexualmente. No entanto, não há nenhuma transgressão estética: os cabelos continuam bem penteados, a maquiagem convencional, o vestido apenas mais aberto, expondo mais o corpo e o olhar continua sendo “blank”: não transmite pensamentos, reflexões, excitação nem energia.
Mas esta é a Marilyn que ninguém quer ver:
Uma mulher cheia de contradições, vivendo a dor de conflitos tão insuportáveis que a mataram, sufocada por este universo que a obrigaram a propagandizar. Essas são imagens de uma mulher que não oferece sua inferioridade intelectual no altar do “status quo”. Ao contrário, atira sua dor, sua tortura e sofrimento na cara de quem o mantém.
Voltemos às Barbies e suas variações, com quem o sexo representa, para P. a “terceirização da masturbação”. A estética delas é uma das mais eficazes formas de violência social. Através desta estética, imposta pelas mulheres que aderem a ela e se comportam segundo essa caricatura de burrice-fofisse e pelos homens que a privilegiam, as mulheres são coletivamente mantidas em prisão domiciliar. Quem transgride rapidamente se desqualifica como objeto potencial de amor masculino. Quem adere torna-se seu próprio algoz, pois nunca mais poderá sair de dentro da máscara de mediocridade que lhe garantiu um lugar ao sol do mundo convencional.
Assim, para os homens que, contra a parede, declaram: “mas é só meu gosto…”, fica o argumento deste texto: não, não é “só” um gosto. É um gosto, e um gosto é uma escolha estética, e uma escolha estética é uma escolha ideológica e política.
Guerra.
P.S. – Brigadão, P. vc é simplesmente genial!
P.S. – O próximo post é sobre a pedofilia e violência embutidos na estreita faixa etária das Barbies desejáveis pelos Bens da vida, em torno dos 20 anos, que faz com que as “maravilhosas” de 40 ou mais se tornem não-mulheres para esses defensores do “status quo”.
Marilia