A poesia que mais me marcou até hoje é “I Think Continually Of Those Who Were Truly Great”, de Stephen Spender, usada por Kay Jamison no livro “Touched with Fire”. Li essa poesia inúmeras vezes, mas lembro bem de uma em particular, logo após ter escapado com vida de uma tentativa de suicídio. Médicos e observadores consideraram minha sobrevivência acidental milagrosa.
Esses momentos são sempre peculiares. Muitos impactos diferentes se combinam – desde a fragilidade física da perda de sangue e das conseqüências fisiológicas do stress até a perplexidade daqueles que, como eu, não têm muita idéia de por que fizeram aquilo. Dúvidas e devaneios existenciais se intercalam. Coisas práticas como a re-construção de uma identidade qualquer, ou a viagem constante na idéia do acaso e de algo que lhe escape – afinal, sobreviver quando as chances para isso são tão pequenas mexem com nossa imaginação, conceitos, pré-conceitos e perspectivas.
Lembro então de me lembrar de tantas e tantas vezes em que ouvi de diferentes pessoas, em diferentes países e culturas, o enunciado de que eu havia vivido “muito”. Por “muito”, sempre entendi “muito intensamente”, algo que dá a idéia de densidade. Muita quantidade de experiência por volume (extensão) de tempo. Poderia gerar um conceito estranho de “densidade de vida” ou “vivência alterada da temporalidade”. Não há como expressar nada disso se não poeticamente, de modo que a poesia de Stephen Spender sempre volta à minha lembrança: gente como eu vive de forma intensa, faz coisas fortes (sejam elas boas, ruins ou nem um, nem outro), rápidas e depois morre rápido também. Seríamos filhos do Sol (algo grande, forte e incandescente), nasceríamos munidos desse fogo interior capaz de incendiar, destruir, mas também de iluminar e maravilhar. No entanto, como tudo, voltaríamos às nossas origens e nela nos consumiríamos.
Como esse era o momento em que eu recebia o diagnóstico definitivo de que não apenas minha desordem “predominante” era mesmo a bipolar, como era uma forma particularmente grave da mesma, junto com o prognóstico de que eu não teria muito mais do que cinco anos de vida, foi um período em que incorporei os sentidos dessa poesia quase como uma tradução da minha identidade. Então, tá: eu era isso. Um animal destinado a viver muita coisa, bem rápido e se mandar – morrer.
Pergunta: isso é bom ou ruim?
Naquela hora, eu não sabia ou não queria responder isso. Minha tarefa era demonstrar para meus familiares que viver desse jeito (seja ele bom ou ruim) era minha opção. Eu havia testado as duas formas: aquela mais segura (mas no meu caso nem tanto, já que nenhuma droga de fato controlou meus episódios inteiramente), onde eu me sentia miserável e infeliz 100% do tempo, ou essa insegura, onde eu vivia integrada, produtiva e feliz a maior parte do tempo, mas com o permanente risco de um episódio mais violento ser letal. Eu preferi a segunda, mesmo que minha sobrevida não fosse de mais do que alguns meses.
Nesse tempo, li uma porção de coisas sobre a vida com desordens crônicas. Existe um gradiente de atitudes pós-diagnóstico que vai da negação e revolta até uma espécie de orgulho eufórico: “sim, eu sou um diabético e isso me faz um ser humano superior!” Ou “sim, eu sou um deficiente físico e isso me enobrece!”. A própria produção intelectual da maior escritora que se dedicou à desordem bipolar, Kay Jamison, de certa forma deixa transparecer um pouco desse “bipolar pride” (orgulho bipolar, termo que ouvi pela primeira vez de um grande amigo também portador). Não por acaso, seu mais belo livro é dedicado aos espíritos mais geniais das artes, portadores de desordem bipolar, sete vezes mais freqüente entre artistas do que na população geral. Somos melhores? Somos mais inteligentes? Ou somos malditos, vítimas da roleta russa genética?
Não quero oferecer a resposta politicamente correta do “nem um, nem o outro”. Há momentos em que não há como não se revoltar contra a condição de bipolar. Não somos como “todo mundo” (e, nessas horas, vemos um “todo mundo” que nem mesmo existe). Não somos normais. E se “de perto ninguém é normal”, como diz Caetano Veloso, se no fundo todo mundo é diferente, no fundo nós sabemos que somos “mais diferentes”.
Talvez o pior da nossa condição diferente é não compreendê-la e não poder contar com ninguém para nos ajudar a compreender. Ainda que a psiquiatria não fosse tão indigente e apenas engatinhasse no entendimento dessa desordem, não há quantidade de pesquisa que traduza para um “normal” que tipo de mundo nós, bipolares, enxergamos. É diferente: as cores são diferentes, os sons são diferentes, o tempo é diferente e a informação é processada de outra forma. Há momentos em que isso se torna insuportável. Nossas dores inexplicáveis doem tanto que nenhuma palavra as descreve. De onde vem isso? Como se faz para fazer parar? Ninguém sabe.
Em outros momentos, temos a plena consciência de enxergar camadas da realidade invisíveis aos normais. Profundidades no relevo do mundo que ninguém mais vê. E isso produz o êxtase da descoberta.
Nem todo bipolar tem vantagens cognitivas. Na verdade, como veremos, a comunidade científica tem tido interesse em mostrar o oposto (bom motivo para medicar mais os bipolares). Mas boa parte de nós o é. Eu passei uma vida onde, na convivência com amigos, familiares, colegas de trabalho e mesmo inimigos, em algum ponto recebi o rótulo de gênio. Sem conseguir entender a maneira como eu processava informação ou como gerava modelos ou idéias, a conclusão geral era essa: “você é um gênio”. Mediram meu Q.I., fizeram ressonância do meu cérebro, o que se possa imaginar. Sim: eu sou diferente (em tudo isso). Algumas dessas “diferenças” foram invejadas – invejadas ao ponto de me tornar vítima de comportamentos punitivos ou vingativos dos outros. Uma coisa que os bipolares precisam rapidamente aprender é que suas diferenças incomodam as pessoas, principalmente se forem entendidas como vantagens.
Eu não gosto de ter dor. Ninguém gosta. Por ser atleta, meu limiar de dor física é muito, muito alto. Mas e essa sinistra dor na alma, que me puxa para um abismo desconhecido dentro de mim mesma como a vertigem de se caminhar em escarpas íngremes? O que posso garantir é que para mim e para os milhões de pessoas que partilham essa condição comigo, é uma dor insuportável. Fazemos qualquer negócio para nos livrar dela, e infelizmente alguns de nós acabam pulando para o tal abismo, do qual não há volta. Outros se entopem de algum anestésico – drogas variadas, álcool ou outras substâncias. Eu já fiz de tudo.
Mas eu gosto do êxtase da descoberta e tenho consciência de que tento provocá-lo em mim mesma o tempo todo, como o ratinho de experimentos skinnerianos que aperta o pedal que despeja alimento agradável no pote plástico. Não por acaso, me tornei pesquisadora. Não por acaso, abandonei a carreira acadêmica quando a busca pelo novo teve que ser trocada por um ritual burocrático (e aí perdi o “barato” da descoberta). Não por acaso, vivo atrás de informação para criar divertidos e elegantes modelos novos, info junkie que me tornei. Não por acaso, minhas paixões (por idéias, projetos e homens) vão até o talo, até a última gota de sangue.
Eu trocaria os momentos de dor insuportável por uma vida sem dor, mas onde não houvesse o êxtase da descoberta? A resposta é não, definitivamente não. O risco da morte e a vida instável (em todos os sentidos, de afetivo a financeiro) são preços pequenos a pagar pela recompensa do êxtase. Diria um psiquiatra mainstream: “claro: todo bipolar adora sua fase hipomaníaca”. E ele não está errado, apenas muito, muito, muito parcialmente correto (quase incorreto, portanto), pois a verdade é bem mais complexa.
Então? Benção ou maldição?
Deixo a resposta para você, leitor. A única coisa que posso dizer é que vivê-la como um, como outro, ou como outra coisa qualquer depende de como se aceita e como se administra a condição. A começar por não chamá-la de desordem, doença ou transtorno, e sim de condição.
Nos próximos capítulos vamos explorar as definições públicas e convencionais sobre a desordem bipolar, o que diz a literatura científica, como e quando ela se instala e tudo isso dentro da perspectiva de observadores “oficiais” e de quem os vivencia (os portadores).
Marilia