Como garantir a execução de projetos sem fins lucrativos: o caso da BPL

Outro dia eu comecei a escrever algo para este grupo e por questões do meu computador, perdi tudo. Então vou editar isso aqui, quem sabe até mesmo publicar em aberto, já que minha preocupação é em como gerir relações entre participantes de um projeto sem fins lucrativos.

São questões facílimas de resolver no powerlifting de fundo de quintal ou no burocrático, pois existe, sim, remuneração. E existem formas extremamente eficazes de coerção. Por causa da remuneração (indireta, ilegal, etc) e da coerção (e severa), além de relações baseadas em trocas igualmente nebulosas com as instâncias governamentais, eles conseguem organizar qualquer coisa.

Precisamos, então, entender o que é um projeto efetivamente sem fins lucrativos e como garantir que ele seja executado.

Então vamos lá para as premissas:

  1. O projeto é sem fins lucrativos. Projetos sem fins lucrativos podem envolver pessoas por diversas vias:
    1. A missionária ou religiosa. A necessidade de realizar o projeto é uma demanda moral, interna. O quanto ela é mobilizadora depende do quanto ela define a identidade de quem s sustenta
    2. A do benefício de longo prazo. Vale a pena investir agora, em forma de tempo e trabalho, para no futuro ganhar em forma de dinheiro
    3. A da necessidade do produto. Não tem ganho nem a curto, nem médio, nem longo prazo. Este é o pior dos cenários: as pessoas se envolvem porque se o projeto não for desenvolvido, a perda é imensa. Alguns percebem mais a perda que outros, alguns efetivamente perdem mais que outros. As pessoas que se envolvem são aquelas que percebem não apenas que a perda, para elas, é imensa, como também percebem que se elas não se envolverem, outros, mesmo perdendo, não vão se envolver. Esse é o pior dos cenários não apenas por não existir ganho em fase alguma, mas porque o projeto já nasce com ressentimento: há uma parcela muito maior de qualquer população que “paga para ver” e tem convicção de que se eles não fizerem, vai aparecer aquele pessoal que sempre faze e vai resolver o problema de todo mundo.
  2. Porque o projeto começa no déficit, ou seja, gerando despesa sem que haja receita, as pessoas têm que enfiar a mão no bolso de alguma forma. Para algumas, isso é um alívio, pois elas se encontram em melhores condições financeiras e assumem que dando uma maior contribuição financeira sofrerão menor pressão por assumir outras tarefas. Outra causa de ressentimento.
  3. Porque o Brasil não tem tradição de ação coletiva (construir uma igreja com todo mundo carregando madeira e as mulheres fazendo a comida, como foi a história dos pioneiros norte-americanos), não há tradição de técnicas de divisão de trabalho. Divisão de trabalho é algo que existe desde que hominídeos caçam juntos. Discutir como fazer algo coletivamente e não resolver rápido é um processo de reinvenção da roda, que gera ressentimento.
  4. O Brasil tem uma cultura de sub-texto. Isso é até enaltecido na cultura popular. É a forma poética do brasileiro se expressar. Não é, não: é a incompetência em administrar a comunicação direta de fatos desagradáveis que gera uma rede de eufemismos. Basta dizer que no país da propina, essa palavra é proibida. Há todo um vocabulários para definir a transação ilegal que envolve propina. Isso vai fundo na nossa cultura: tentamos ensinar nossas crianças a dizer “eu não gostei” quando são mordidas por outras crianças. Mas logo em seguida elas desaprendem isso e substituem o “eu não gostei disso” por um jogo complicado e perverso.
  5. O mesmo ocorre com o pedido de desculpas. A cultura brasileira é uma das que mais tem dificuldade com assumir a responsabilidade sobre um dano, e, ou reafirmar que o dano era mesmo o resultado esperado, talvez até mesmo intencional, ou fazer uma profunda auto-análise, entender por que caminhos perversos da mente aquele dano foi cometido contra o outro, admitir isso e procurar fazer alguma reparação. Eu, sinceramente, nunca vi isso acontecer.

Tudo isso torna muito difícil desenvolver um projeto coletivo sem fins lucrativos aqui. A simples sinceridade de declarar o motivo de se estar envolvendo com o tal projeto já é um desfalque.

Em pouco tempo, o grupo envolvido no projeto se perde em complicadíssimos labirintos de subtextos. Discussões sem fim acontecem porque o jogo (“games people play”) toma prioridade sobre o que quer que tenha que ser feito.

Quando o jogo leva a um ressentimento tão profundo que não há forma possível de reverter o dano em algum sub-conjunto de relações, é preciso decidir algo muito objetivo: quem sai. Mas sendo brasileiros, ninguém quer olhar para o problema dessa forma. O grupo está vivendo aquele estado de profundo mal estar civilizatório, porque esta ocorrência obriga todo mundo a olhar para a universalidade daquilo. Nessa hora, alguém tem que tomar a iniciativa e expor este rei nu: é preciso decidir quem é mais prioritário ao projeto e o outro sai. Não tem outro jeito. O grupo é pequeno demais para os dois.

Há problemas de culturas de gênero e regionais. As mulheres, aqui, foram educadas para jogar longos, circunvolutos e redundantes jogos retóricos. A expressão de desespero de alguns homens diante disso não é motivo de riso, é uma tragédia. Isso exibe o quanto a nossa cultura de gênero é tal que as mulheres são condicionadas a jogar, a manipular e a se ressentir com a demanda da expressão objetiva e direta.

Só que num projeto, isso é obrigatório. Quando o projeto é remunerado, como foram os que eu coordenei até hoje, eu vi sim, meninas chorando antes de apresentações, manifestações de irracionalidade, isso tudo. Só que dia 20 o relatório tinha que estar na minha mesa, ou então a pessoa estava demitida. Era bolsa: eu tinha o poder de dar e tirar sem aviso prévio e sem nada. Tudo isso era sabido por todos e sempre funcionou.

Mas num projeto não remunerado isso é impossível. Ninguém tem o poder de retirar a remuneração do outro porque ninguém tem remuneração.

O valor da CONFIANÇA e do COMPROMISSO sobem infinitamente. No entanto, confiança e compromisso são itens raros e escassos no mercado simbólico.

O que fazer?

Na minha opinião, estabelecer regras nada simpáticas:

  1. Não havendo remuneração, substitui-se o poder de coerção que ela representa por acordos assinados e registrados, com penalidades em dinheiro.
  2. O estatuto em si representa um efeito coercivo. Não é a toa que eu quero que esse assunto se resolva o mais rápido possível e que a responsabilidade legal saia o mais rápido possível das minhas mãos.
  3. Que nada seja sub-entendido e tudo seja manifestado por escrito, de forma suficiente e necessária. “Reitero meu compromisso em organizar campeonatos em minha região, em minha academia, e a compra de anilhas calibradas é o primeiro passo para a efetivação do mesmo.” Simples, três linhas, economiza páginas de discussão e horas de inbox. “Minha militância partidária é prioritária sobre o apoio a esta organização. Em verdade, eu não deveria estar aqui, pois, calculando meu tempo disponível, ele é nenhum para esta causa considerando uma priorização efetiva”.
  4. Erros cometidos devem ser seguidos de um documento de análise e auto-crítica submetido e aprovado pelo grupo. Sem isso, o indivíduo deve ser eliminado do grupo e se fizer parte da diretoria, marcada uma assembleia extraordinária para substituí-lo
  5. As funções de cada pessoa devem ser estipuladas com extremo detalhamento num regimento interno. Isso nunca foi feito, mas assim que a situação cadastral da ANF/BPL estiver regularizada, é o primeiro passo. Quem faz o que, onde, quando e como.
  6. As atividades da entidade devem ser precisamente descritas: 1. Organizar campeonatos; 2. Administrar uma rede de contatos com crossifts; 3. Controlar administrativamente a contribuição dos sócios; 4. Fazer o sol nascer; 5. Realizar os partos da periferia de Osasco. Enfim, essa é uma lista hipotética,mas a verdadeira tem que ser feita, sob risco da entidade morrer.
  7. Quando alguém não dá conta ou percebe que não tem interesse nem mesmo no esporte se isso depender dela realizar a tal função, essa pessoa deve ser imediatamente substituída.
  8. CRONOGRAMAS: tudo tem que ser executado segundo cronogramas. Todo gestor de projeto sabe disso. Sem um cronograma e um gerenciamento de projeto, é o mesmo que declarar a entidade morta. Feito o cronograma, uma pessoa necessariamente é responsável pelo monitoramento do cronograma, que é função quase tão importante quanto a de manter a tabela de recordes.
  9. Amizades não devem ser estimuladas. Se acontecerem espontaneamente, ok. Eu sugiro fortemente que ninguém ofereça a própria casa para alojamento de membros do grupo de outros estados. As pessoas não partilham os mesmos valores morais. Quanto menos estes valores forem confrontados, melhor para a saúde da entidade. Esse tanto eu aprendi bem nos Estados Unidos: não se discute política, religião ou loucura exceto se o grau de intimidade seja muitíssimo elevado, coisa que quase ninguém tem aqui. Essa pressa em forçar intimidade, típica da cultura brasileira, é parcialmente responsável pela morte de projetos. Não é preciso e até é melhore que não haja intimidade entre os membros do grupo que executa o projeto.
  10. As relações com os atletas deve ser igualmente bem regulamentada. O ressentimento que todos os membros do grupo terão ao ver os atletas alegremente usufruindo do produto de seu sofrimento é inevitável. Assim, deve ser regulamentado.

Nada disso é digestivo ou agradável. Mas se vocês querem a entidade ativa, é preciso encarar a parte dura da realidade de não ser corrupto num país onde isso é o default.

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