Eu e meu corpo: o gato sujo lá fora

Eu tenho alguns conhecidos muito acima do peso, poucos realmente obesos. Uma dessas pessoas se corresponde regularmente comigo. Já calculei algumas dietas para ela, fiz um grande número de sugestões para administrar comida, mas nenhuma deu resultado. Ela insiste em três coisas: 1. afirmar que “não consegue” controlar sua compulsão por se entupir de alimentos (que, analisados, correspondem a alimentos infantis, docinhos e agradáveis); 2. dizer que comida é a única fonte de prazer importante para ela; 3. dizer que tem ódio de dieta, de ter que se “submeter” a essa ordem. Quase todas essas pessoas também “não conseguem” se forçar a ir à academia ou acham “academia um saco” e “odeiam musculação”.
Tudo isso me deixava desconcertada, impotente diante de um quadro tão irracional. Não sei lidar com coisas irracionais e elas me afligem. No entanto, essas pessoas despejam seus sentimentos confusos com relação a comida e corpo sobre mim quase que diariamente e eu acho que preciso entender um pouco como isso funciona.
Existem muitas pesquisas sobre a psicologia da ingestão compulsiva de alimentos, mas a maior parte delas se refere à super-alimentação involuntária, aquela que é causada por condições fisiológicas ou estímulos ambientais, a maioria deles propositadamente criados pela indústria de alimentos. Hiper-insulinemia provoca sobre-alimentação em ratos. Supõe-se que em humanos também, já que a hiper-insulinemia reativa após refeição com grande proporção de carboidratos de alto índice glicêmico leva à surtos de ataque à geladeira e isso é conhecido. Quanto aos fatores ambientais, embalagens grandes, nomes atraentes, tudo isso foi pesquisado e estatisticamente associado ao aumento de consumo de alimentos industrializados (sim, eles são “do mal”, veja http://www.foodpsychology.com/).
Mas o que realmente me interessa é a super-alimentação voluntária, aquela praticada por pessoas que sabem que aquela comida está levando ao sobre-peso.
O discurso irracional da primeira obesa é um ponto de partida. A idéia pouco articulada que eu tenho quando ouço o discurso dela é que o corpo dela é uma espécie de animal de estimação indesejado, dado para uma criança que não tem competência para cuidar dele. A criança ganha o gato. Até se entusiasma no começo, mas o gato não corresponde – nem curte as tentativas desastradas de fazer carinho da criança. A criança tenta dar bolacha para o gato – ele não come. A criança então, obrigada pelos adultos a tomar conta desse gato que aparentemente não gosta dela, não come o que ela quer e vai ficando cada vez mais feio, sujo e esquisito, quer fugir da responsabilidade. Ela odeia o gato.
A dieta, para essa obesa, é uma “ordem externa”. Não tem nenhuma relação com ela mesma. Assim como seu corpo é externo a ela.
Ela odeia academia. Essa obesa, em particular, é extremamente sensível ao julgamento externo, de modo que parte dessa rejeição vem da consciência de que, comparada às outras mulheres, ela é mais feia. Mas também tem a rejeição à atividade física em si. Não é ela que estará se movimentando. É o gato feio que mamãe obrigou a cuidar.
O gato feio vai ficar mais feio com o próximo Big Mac e sorvete. Mas a overdose de gordura e açucar de alto índice glicêmico vão proporcionar um prazer imediato que a dona do gato feio quer.
Não há quantidade de informação e argumento lógico que faça uma pessoa assim mudar de atitude. Afinal, todos nós valorizamos nosso prazer e satisfação na vida. Se algo é visto como absolutamente dissociado de prazer e satisfação, então é difícil que seja executado. Para isso serve a moral e as religiões. Fazer dieta, cuidar do corpo, viram exigências moralistas. E não há nada mais opressivo do que uma obrigação moral.
Assim, ela se rebela.
Outra componente é a auto-preservação. Alguém pode alegar que a sobre-alimentação é um comportamento auto-destrutivo. Pode ser, mas pode não ser. Se o corpo está fortemente representado nessa pessoa como algo externo, ela não está destruindo nada dentro dela. É o gato feio. E foda-se o gato feio.
Até que essas pessoas se apropriem de seus corpos, acho que qualquer dieta é difícil de dar certo. Dieta – regime alimentar, disciplina imposta de fora.
A comparação e o contraste ajudam a entender. Me refiro à nossa sub-cultura de atletas e adeptos de um estilo de vida baseado em treinamento de força intenso e dieta. Pessoas assim estão permanentemente em “dieta”: ou elas estão buscando aumentar sua massa magra, ou perder gordura (os dois juntos, todos sabem, é impossível). O que e quando comer é parte essencial da vida de alguém assim. Esses horários e composições são observados o mais rigorosamente possível. Passadas três horas sem comer, passa a ser prioritário achar rango. Ninguém reclama da monotonia da combinação “peito de frango-macarrão-batata”. É assim e pronto. Ninguém reclama de gordura corporal: ou ela está lá porque tem que estar mesmo, porque para ganhar músculo, também ganhamos gordura, ou ela está indo embora porque estamos em dieta para secar. O outro lado do que os psicólogos politicamente corretos ridiculamente chamam de “dismorfia muscular” (auto-imagem distorcida por obsessão com volume muscular, uma síndrome cuja caracterização é baseada em nenhum dado empírico confiável) é uma relação muito pacífica e sem tensão com comida e composição corporal.
Davis e colaboradores (Decision-making deficits and overeating: a risk model for obesity, Obes Res. 2004 Jun;12(6):929-35) relataram os resultados de uma pesquisa sobre aspectos neurológicos do processo de tomada de decisão. Segundo esses autores, processos corticais e sub-corticais que regulam a habilidade dos indivíduos de inibir recompensas de curto-prazo quando as consequências de longo-prazo são deletérias, estão envolvidos no comportamento de sobre-alimentação.
É provável. É provável também que esses processos se associem com outras desordens mentais, particularmente as de humor. E que também se combinem perversamente com componentes culturais, como a instalação do hábito de consumir hambúrgeres entre crianças de sociedades industrializadas. E que tudo isso se ajuste ao conceito contemporâneo da obesidade como uma síndrome complexa envolvendo determinantes socio-culturais, genéticos, fisiológicos e psicológicos.
No entanto, eu acredito que a separação do indivíduo em relação a seu corpo explica bastante também. Digo isso por causa do comportamento alimentar altamente deliberado dos atletas que observo. Não acredito que essa população seja geneticamente tão distinta da população majoritária sob o ponto de vista dos elementos corticais e sub-corticais relatados por Davis e colaboradores. Só que esses elementos não produzem o mesmo efeito comportamental em indivíduos que conseguiram se apropriar de seus corpos.
Eu acho isso. Por enquanto.

Marilia

 

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