O projeto de desentulhamento – parte 3: as pessoas

Continuo na minha faina desentulhatória, laboriosamente escolhendo os livros para encaixotar. Agora entra uma fase bem difícil e frustrante. Cheguei na camada de livros mais ansiogênicos. Eles retomam aquele dilema do começo: mas é um livro tão importante, eu não lembro mais quase nada, não vou lembrar do título, e se eu precisar? Ai, ai, ai…

Paralelamente, à medida em que vão aparecendo espaços desentulhados, vão aparecendo as coisas sem pé nem cabeça que precisam ser jogadas no lixo.

O processo de desentulhamento, portanto, cria algumas categorias de ações:

  1. A doação: livros, aparelhos, roupas e outros objetos que não fazem mais sentido na minha  vida, mas têm utilidade para alguma outra pessoa.
  2. Jogar fora: livros e artigos xerocopiados há décadas não têm que ser dados pois a impressão está quase ilegível. Têm que ser jogados fora, mesmo. Calcinhas e tênis furados, objetos que eu não sei  nem qualificar, fitas cassete antiqüíssimas (e certamente sem registro magnético algum) – tudo isso não tem o que ponderar: é lixo e pronto. Há uma categoria de objetos que me intriga: a das coisas que, além de inúteis, são perigosas e um risco permanente. Lembram dos dois vidros com pó preto tóxico? E faca afiada sem cabo? Cestas cheias de porcarias ótimas para ninho de aranha?
  3. Relocar: com o desentulhamento, certas coisas podem ser colocadas em lugares mais adequados. Coisas que você usa menos em gavetas ou partes de armário menos acessíveis, objetos de uso cotidiano em locais mais à mão.
  4. Cuidar melhor daquilo que é realmente importante. Às vezes, num universo entulhado, as coisas das quais a gente realmente precisa e gosta somem sob sedimentos de objetos desconexos e são danificadas ou sujas, pois não estão no lugar mais seguro.

Olhando estes quatro itens é inevitável a analogia com pessoas e relações. Existem pessoas que não fazem mais sentido na nossa vida. Um dia tivemos algum tipo de relacionamento com elas, mas hoje, não mais. Não são parceiros, colegas, clientes, amigos – nada. Não existe vínculo de afeto, mas também não há rejeição. A gente continua envolvido com elas por algum motivo que parece lógico, mas não é.

Os meus exemplos são as relações feitas em organização esportiva, militância e outras atividades que eu fiz por pura obrigação. Nunca curti, foi ruim e hoje eu consegui botar o dedo na ferida da culpa. As pessoas com as quais eu só tinha isso em comum não fazem mais sentido na minha vida. Não são pessoas más ou boas e certamente fazem muito sentido na vida delas mesmas e de outros.

– oi

– oi

– e aí, você viu quem foi pego no anti-doping?

Ora, não vi, não tenho o menor interesse, pertencem a um mundo que há anos não  é o meu e esse papo, que de fato aconteceu, tomou uns 15 preciosos minutos da minha vida.

São as famosas relações por inércia, muito estimuladas por sistemas de chat virtual onde as pessoas ficam ali, dando sopa, sem muito que fazer e acabam puxando assunto com a gente.

Acho que dessas relações eu cuidei bem: eu não estou disponível, nunca. Nunca estou online, raramente atendo telefone, de modo que as relações por inércia não se mantém por essa via comigo. Mas existem outras. É hora de reciclar.

Existem relações que realmente precisam ser cortadas. Algumas de maneira suficientemente drástica para que nunca mais consigam se enraizar. São relações tóxicas, como o pó preto nos vidros de palmito.

É comum que depois que os contatos em si foram cortados, a relação continue ocupando espaço na cabeça da gente. Continuam exercendo seu papel tóxico. Os motivos são variados, mas quase sempre envolvem ressentimento e dor.

No fim do ano passado, aprendi com o Diego um método sensacional para jogar fora estas relações tóxicas: tomar a decisão de não usar mais o nome das pessoas, não comentar mais situações que as envolvam, principalmente aquelas que foram origem do dano causado a nós. É dificílimo cumprir. Dá uma vergonha de si mesmo perceber que, no fundo, queremos continuar alimentando a raiva e o ressentimento. A gente tem apego ao rancor. Quando é só raiva, quando nunca houve afeto, nutrimos complexas fantasias de destruição. Quem é que não criou scripts de enforcamento, guilhotinamento, afogamento, esfaqueamento e furar o olho do inimigo com chave de fenda? Uma anilha de 15kg na testa, abrindo o crânio e espalhando o cérebro? Esmagá-lo numa prensa industrial?

Perdão, acabei me perdendo, estas fantasias realmente são tentadoras. Viram? Terrível! Mas sem o nome e a cara do filho da puta a ser destruído, a fantasia não funciona.

O pior é quando o ressentimento é um sentimento secundário a um afeto original. Aí… a tarefa é realmente hercúlea. Todo mundo já mergulhou no devaneio esquizofrênico de recuperar a relação perdida e destruir o sujeito do nosso ressentimento.

O método do Diego se aplica a ambos: uma vez que não se use mais o nome e não se mencione mais situações com estas pessoas, aos poucos elas vão deixando de gerar scriptzinhos demoníacos na nossa cabeça. Não é imediato: no começo, elas ainda aparecem. A gente ainda gilhotinha cabeças, dedos e picas. Ou faz sexo animal numa dimensão paralela onde o conflito nunca aconteceu.

Tirando da nossa vida quem não tem que fazer parte dela, fica mais fácil organizar as relações que fazem sentido: clientes aqui, parceiros ali, amigos de diversos graus e naturezas, cada um em seu canto, familiares, amores, tudo fica mais organizado.

Finalmente, vem a parte melhor: com isso tudo feito, tendo nos livrado das relações tóxicas, limpado direitinho as que importam, temos como dar mais atenção, cuidar melhor e alimentar as que nos são caras.

Fica mais fácil amar.

 

 

 

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