Hoje é o “dia nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais”. Esse negócio de “dia” oficial me incomoda um pouco, mas se a gente usar como um marcador na agenda, pode funcionar. Vamos parar para pensar o tema e falar a respeito, mesmo que seja um tema sobre o qual deveríamos pensar todos os dias, como “direitos da criança” ou “direitos humanos”.
Como é que podemos fazer para que todos pensem o tempo todo em algum problema? Até hoje, só conhecemos um jeito: a identificação. Enquanto o outro é um “outro” entre aspas, brilhando feito um E.T. com sua alteridade em primeiro plano, não funciona. Todo mundo concorda que não é legal exterminar pessoas que estão tocando sua vida só porque não têm a mesma etnia, cor de pele, idioma ou religião que a gente. No entanto, assistir “Ruanda” ainda é uma experiência de alteridade: é aquele horror que acontece num planeta distante chamado África.
Eu proponho um exercício de reflexão sobre transgeneridade. Vamos assumir alguns pressupostos aqui:
- Os papéis de gênero são socialmente construídos e são difundidos pelas instâncias de educação e inculcação ideológica (escola, igreja e, hoje, sobretudo o marketing da indústria da beleza);
- Para funcionar, eles precisam ser “tipos ideais” bem claros: temos dois gêneros aceitáveis, cada um correspondente a um dos sexos biologicamente herdados e predominantes, cada um associado a um conjunto de elementos comportamentais e valorativos;
- Estes elementos comportamentais e valorativos vêm em caixinhas de repertórios estéticos, atitudinais, gestuais, ocupacionais, entre outras (caixinhas);
- Para funcionar mesmo, é importante que as pessoas acreditem que tudo isso foi dado por uma divindade (“Deus fez assim”) ou pela Natureza (“a Natureza fez assim”);
- A transgeneridade consiste em questionar este último item, juntar com o primeiro e propor uma construção social alternativa, onde as escolhas do sujeito se superponham às imposições sociais dominantes externas.
Se assumirmos esses pressupostos, @s travestis e transgêner@s são as pessoas que manifestam uma expressão ao mesmo tempo mais óbvia e consciente de algo que é muito mais disseminado e comum. No fundo, ninguém consegue se adequar plenamente aos papéis de gênero, por definição: eles são tipos ideais!
Admito que é esquisita essa idéia. Requer imaginar aquele tio careta e machista sendo um transgênero: não combina. No entanto, no dia em que ele se emocionar no escritório e for repreendido pela “viadagem”, o que ele está sofrendo não é só uma ação homofóbica. Ao considerar o comportamento dele uma “viadagem”, na verdade o que as pessoas estão apontando é a transgressão da fronteira de gênero: “opa, cuidado, desse lado de cá estão os homens, lá ficam as mulheres. Pare com essa choradeira porque você está dando nó na nossa cabeça”.
Isso acontece o tempo todo, todos os dias. Se você é um cara hetero, pense nas vezes em que, mesmo de brincadeira, apontaram uma viadagem sua? E você, mulher hetero, não acredito que nunca tenham sugerido um comportamento “mais feminino” para você.
Transgeneridade é transgressão de papéis estereotipados de gênero. Quando mais gente conseguir enxergar dessa maneira, e não como uma esquisitisse de uns caras e umas minas que se vestem como palhaços, ou umas aberrações de uns caras e umas minas que se submetem a cirurgias mutilatórias, tudo entra em perspectiva (e aí eles não são palhaços e as cirurgias não são mutilatórias). Esses caras e essas minas são você e eu, sua tia e o moço da rua. Somos todos nós que, em maior ou menor grau, com maior ou menor consciência, desejo e serenidade, transgredimos a pior de todas as imposições externas: a prisão mental dos papéis de gênero.
Somos todos transgêneros e vamos dar um pau na transfobia.