Pesquisa sobre sedentarismo de hoje na Folha: problema real, conceitos discutíveis e falsas soluções

Hoje a Folha de São Paulo publicou os resultados de uma pesquisa feita pelo próprio Data Folha em colaboração com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u326873.shtml ). A pesquisa revelou que 50% dos brasileiros é sedentária. Na reportagem, alguns detalhes com estratificação por faixa etária e tipo de atividade física, mostrando o esperado aumento da inatividade com a idade.

Longe de mim questionar a validade de qualquer pesquisa que aborde o ignorado tema da atividade física e muito menos uma iniciativa que combata a inatividade, origem de tantos transtornos para a saúde física e mental. No entanto, ao tomar de barato o significado de atividade física e de sedentarismo, esse estudo, como quase todos os outros no mundo, acaba reforçando conceitos questionáveis e agendas ocultas.

O questionamento sobre as metodologias utilizadas para medir os índices de sedentarismo ou atividade física já vem sendo registrado há algum tempo. O estudo de Macera et al (2001) mostrando que, ao modificar algumas perguntas do questionário mais aceito pela organização mundial de saúde para medir sedentarismo, seu índice caía cerca de 10% na amostra, é um deles.

Afinal, o que é atividade física? Nos questionários mais adotados no mundo, é a atividade realizada em horário de lazer, que não o de trabalho, onde uma escala pré-codificada permite ao entrevistador classificar a resposta como atividade “intensa”, “moderada” ou “leve”. É bem possível que num país desenvolvido, altamente industrializado, uma parte pequena da população seja fisicamente ativa no trabalho. Em países como o Brasil, no entanto, isso não é verdade. Embora o setor terciário seja grande, o setor secundário e primário ainda são relevantes e a parcela da população na economia informal, gigantesca. Ignorar que um contingente importante destas pessoas consome muitas kcal/h realizando força ou movimentos repetidos de resistência é até engraçado. Ou será que alguém duvida que um trabalhador da construção civil pode ser qualquer coisa MENOS sedentário? E a empregada doméstica? Quanto tempo sua faxineira fica sentada carimbando formulários durante as cinco ou mais horas em que limpa a sua casa? Você já observou os movimentos que ela faz e as resistências contra as quais realiza força? Só dois exemplos.

Nos países desenvolvidos a situação não é mais fácil: eu vivi muitos anos nos Estados Unidos e conheço de perto a pobreza disfarçada daquele país. Assim como o consumo de tabaco é maior entre os pobres e etnias discriminadas, o sedentarismo e obesidade também. Isso porque as ocupações disponíveis para uma mulher negra e pobre, com uma educação formal tão precária que mal a coloca acima da linha do analfabetismo funcional, são aquelas que grudam sua bunda numa cadeira por oito longas horas (se tiver um emprego só), depois das quais ela voltará para casa e, exausta e deprimida, assistirá TV comendo pizza barata até a hora de dormir. “Fitness Centers” e “Gyms” (academias) são coisas para a classe média.

E aqui? Academia é uma opção para os trabalhadores? Certamente que não! Não podendo responder as perguntas “quando”, “onde” e “como pagar”, a opção é descartada. Alternativas populares não são pensadas levando em consideração a vivência corporal de cada cultura e comunidade desse país tão diverso. Acho muito difícil interessar mulheres da Rocinha numa aula de step ou jump e ninguém se preocupa muito em investigar o que serviria melhor os interesses delas.

Então vem a famosa máxima dos cardiologistas: a caminhada e a corrida. E mais dois problemas sérios: um logístico e social (caminhada e corrida são opções para a população?) e outro científico/médico (caminhada é a atividade mais benéfica do ponto de vista da saúde da população?).

Durante os últimos meses, passei boa parte do meu tempo dentro da favela de Paraisópolis, em São Paulo. Nunca vi nenhum survey (posso apostar que nenhum foi feito), mas o número de obesos não é alto em comparação à população de São Paulo. No entanto, utilizando os critérios de qualquer questionário oficial, seria uma população majoritariamente sedentária, já que ninguém “pratica caminhada” e muito menos “corrida”. Um número bem pequeno pratica musculação. E da listinha pré-codificada, acho que é só. Quem conhece aquela comunidade, no entanto, ri: como se pode caminhar numa área de morros íngremes que sequer calçadas tem? Ou correr? Como considerar sedentária uma população que caminha muito mais do que seus vizinhos de classe média seja para comprar o pãozinho ou ir trabalhar, já que a locomoção por carro não é uma opção para se ir até a esquina? E os jovens que praticam dança (que não é um item da lista pré-codificada) várias vezes por semana, regularmente, como tantos que conheço? São sedentários? E as centenas de empregadas domésticas, uma das poucas opções ocupacionais para essa população tão discriminada e condenada à informalidade?

Quanto a caminhada e corrida serem as atividades que melhor previnem os males do sedentarismo, mais uma vez, não é verdade. Isso é uma perspectiva vinda da cardiologia, cada vez mais contestada por profissionais da atividade física. A atividade mais benéfica ao pré-diabético e diabético, longe de ser a caminhada ou corrida que podem até ser negativas em certos casos, é o exercício resistido ou musculação. Vários estudos tem mostrado isso.

Assim, a pesquisa divulgada pela Folha alerta para um problema grave de saúde pública mas infelizmente não contribui muito para sua solução. Ao mostrar como consensuais conceitos no mínimo discutíveis e apresentar falsos consensos quanto às alternativas, acho que contribui bastante para confundir esse já obscuro meio de campo.

 

Marilia

 

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