A barriga – série O Açougue

Entramos no nosso terceiro capítulo da série “Açougue” (leia também “bunda”  e “peito” ). Saímos dos dois itens que, no imaginário publicitário definem a mulher: peito e bunda. E as demais partes do corpo, seriam menos estigmatizadas por marcas ideológicas de gênero? Penso que não. Penso que em todas as partes para onde dirigirmos nosso olhar no corpo feminino, veremos as marcas das representações de gênero e, em nossa sociedade, as marcas da formolatria.

Hoje nosso corte nesse açougue é a barriga. A primeira coisa que chama atenção em relação à barriga feminina é a prescrição quanto à sua inexistência. Se peitos e bundas deveriam ser redondos, firmes, assim ou assado, a barriga é um espaço vazio. A melhor barriga, do ponto de vista formolátrico, é a “barriga chata”, ou a não-barriga.

É difícil falar de barriga feminina sem falar da prescrição de magreza e da rejeição à gorda  (também chamada de gordofobia). Embora seja uma questão não menos importante e dolorosa, não é esta a proposta desta série. Então, voltemos à forma da barriga e para a inversão destas questões: barriga e peso, do ponto de vista da barriga.

A barriga chata

A barriga chata é a barriga que não tem quase gordura subcutânea, não tem gordura visceral, não tem muito músculo e cuja portadora também não tenha tendência à flatulência ou qualquer perturbação intestinal.

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Figura 1 – barriga chata

A maior parte dos programas de “perda de peso” visam a barriga. O termo “perda de peso” já é um problema. O mínimo que se pode dizer sobre essa expressão é que reflete desinformação. O pior é manipulação, mesmo: a maior parte das pessoas que quer “perder peso” quer modificar sua forma. Outra parte quer porque o médico mandou, associando o “excesso de peso” à diversos sintomas presentes e riscos como a pressão alta, indicadores como triglicérides ou colesterol alto e o risco de síndrome metabólica e diabetes tipo 2. Deixemos esta população que está preocupada com a saúde para o último item. O foco agora é quem quer perder peso para modificar sua forma.

A modificação da forma tem uma relação apenas indireta com o peso. O que modifica a forma é a mudança na composição corporal. A composição corporal é a proporção de massa magra (composta principalmente de músculo) e gordura que tem uma pessoa.

Uma busca no Google com a expressão “lose weight” (perca peso ou perder peso) produz 56.900.000 resultados. A expressão “belly fat” gera 9.420.000. A expressão  “lose belly fat” gera  8.660.000.  Nesta primeira análise superficial da mídia vemos que a barriga responde por cerca de 17% de tudo que é apresentado para se perder peso. Se observássemos cada link relacionado ao tema, no entanto, veríamos esta proporção aumentar.

Numa busca no Google images com a expressão “lose weight”, analisei os primeiros 20 resultados (primeiros resultados têm um papel diferente na métrica de mídia digital). Destes 20, 11 eram imagens de barriga. Destas 11 imagens, 100% apresentavam mulheres e apenas uma tinha um casal.

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Figura 2 – imagens de emagrecimento

Esse bombardeio leva as mulheres a se engajar em programas de redução de peso de todos os tipos, com ou sem drogas, com ou sem exercícios. Se for com exercícios, serão os famosos “aeróbios”, apresentados erroneamente para as clientes como aqueles que melhor promovem o resultado esperado, que é a mudança na forma. Sim, ela quer se livrar da indesejada barriga. O que ela terá, no entanto, se der certo o programa, é uma perda de tudo: gordura e músculos em toda parte. O resultado obtido, então, como bem diferente do esperado, é flacidez. O problema original, que era a barriga indesejada, se multiplica em bunda e peito caídos, pernas flácidas com estrias e celulite aparentes e um aspecto geral de “balão murcho”.

Existem treinos muito específicos, associados a dietas, que produzem, se a genética da mulher for favorável, corpos com bundas redondas, barrigas chatas e, com o devido silicone, peitos grandes (sem silicone, nem pensar). Duas modalidades esportivas bastante polêmicas se especializam nisto: a categoria “bikini” da IFBB (International Federation of Bodybuilding) e a “toned” da NABBA (National Amateur Bodybuilding Association). Como relatam as atletas destas categorias, o trabalho para “esculpir” corpos assim não é nada simples. É uma modificação corporal não apenas difícil, custosa como cara.

fig 3

Figura 3 – miss bikini e toned

Assim como tudo que é prescrito pela formolatria, a “barriga chata” é praticamente inexistente. É atrás dela que estão as mulheres que sofrem de insatisfação corporal. É atrás do dinheiro delas que está a indústria da beleza.

O mercado

O mercado de emagrecimento, o qual, como vimos, tem como alvo preferencial a sua barriga, é gigantesco: o U.S. Weight Loss & Diet Control Market study estimou, em 2009, em 61 bilhões o valor da indústria de emagrecimento, que abrange diversos setores . Este valor cresce a cada ano, a despeito da crise econômica. Curiosamente macabro é o crescimento paralelo da taxa de obesidade naquele país. O mínimo que concluímos é que todas estas atividades que supostamente buscam atacar o sobrepeso, do ponto de vista epidemiológico, são inócuas.

As drogas para perda de peso (e de barriga) são alvo de muita polêmica e boa parte dos profissionais sensatos contra-indicam seu uso pelos efeitos colaterais que exibem. Estas drogas têm uma história dramática e deixaram um rastro de mortes e desordens atrás de si.

Um dos primeiros medicamentos a ser banido pelo FDA, em 1938, é o dinitrofenol (DNP).  O DNP é um composto utilizado na fabricação de tintas e preservativos de madeiras. Ingerido, ele é um potente veneno que atua no desacoplamento da fosforilação oxidativa, fazendo com que o organismo gere mais e mais calor sem a correspondente quantidade de energia. O resultado é o risco (alto) de morrer assado. Muitas pessoas morreram sendo as principais vítimas, mulheres.

As drogas para perda de peso são variadas. Os principais grupos continuam sendo os anorexígenos, entre os quais as anfetaminas ainda têm um lugar importante, e os inibidores seletivos de absorção de nutrientes. Boa parte dos medicamentos para perda de peso são também estimulantes e entre os efeitos colaterais estão síndromes de ansiedade.

Existe uma guerra entre a indústria farmacêutica e os fabricantes de produtos “naturais” (com menos efeitos colaterais e não classificados como drogas) para a perda de peso. São muitos bilhões de dólares em jogo .

O número de programas de atividade física para perda da “barriguinha”, ou dietas com a mesma finalidade é imenso. Uma busca no Google com a expressão “diet lose belly fat” resultou em 12.500.000 resultados, entre os quais os cinco primeiros são (minha tradução):

– como perder gordura na barriga: dicas para uma barriga chata

– dieta da barriga chata: perca gordura na barriga e achate-a

– plano de 7 dias para uma barriga chata

– doutor da dieta: as melhores formas de perder gordura na barriga (revista “Shape”)

– 12 truques para ajudar a perder gordura na barriga (“Cosmopolitan”)

Uma busca em “exercise lose belly fat” resultou em 14.300.000 resultados. Os cinco primeiros são:

– os 5 exercícios “top” para perder gordura na barriga

– treino para abdome: a maneira mais rápida para perder gordura na barriga (revista “Shape”)

– melhores exercícios para os “love handles” (alças do amor, eufemismo para a gordura lateral da barriga): 10 maneiras de perder gordura na barriga

– exercícios para perder gordura na barriga

– 3 exercícios para queimar gordura corporal

Leitora, o melhor que se pode dizer de cada um destes links é que se trata de charlatanismo. A deposição de gordura no abdome ocorre como resultado de uma composição corporal com maior percentual de gordura combinada a determinantes hormonais que farão com que ela se deposite preferencialmente em determinadas regiões do corpo. É fisiologicamente impossível que um programa nutricional promova a perda da gordura em uma região e não em outra, pois o programa nutricional manipula composição macro-nutricional da dieta e ingesta calórica, e não hormônios. É fisiologicamente impossível que qualquer programa de exercícios promova a perda preferencial de gordura em uma região do corpo em detrimento de outra.

É: charlatanismo dá muito dinheiro, especialmente quando vem no rastro de algo tão poderoso como a formolatria .

 

O que é a barriga

Também conhecida como abdome.

É nele que estão localizados os órgãos vitais da pessoa. Eles ficam organizados nesta área, protegidos pela caixa torácica e a musculatura abdominal.

A musculatura abdominal, como vimos no capítulo da bunda, é parte do chamado “core”, o complexo muscular lumbo-pélvico-abdominal-dorsal reponsável pelo equilíbrio e eficiência na postura bípede. Pode parecer esquisito, mas nossa musculatura abdominal é mais recrutada para tarefas simples na posição ereta do que executando exercícios abdominais no chão.

Pessoas fortes não têm “barrigas chatas” por um motivo simples: a musculatura abdominal, como qualquer outro músculo esquelético, sofre hipertrofia sob estimulação da execução de força.

Uma barriga fica “gorda” através de duas formas de depósito de gordura. Estas duas formas são muito diferentes uma da outra do ponto de vista fisiológico, de modo que vamos entendê-las. Uma é a gordura sub-cutânea e a outra é gordura visceral. A gordura sub-cutânea é aquela que se acumula debaixo da pele. Do ponto de vista da saúde, ela não representa os problemas que a gordura visceral tem.  Existe uma relação modelada matematicamente entre a gordura sub-cutânea e a quantidade total de gordura do corpo. Um dos métodos para se estimar o percentual de gordura é a medida de “dobras cutâneas”.

A gordura visceral, também conhecida como abdominal ou intra-abdominal, localiza-se entre os órgãos. Embora qualquer forma de gordura seja endocrinologicamente ativa (produz hormônios como a leptina e a resistina), a gordura visceral está associada a diversas doenças inflamatórias, diabetes tipo 2 e resistência à insulina.

É importante ter estas informações  não para penalizar as pessoas gordas (veja aqui e aqui  ), mas para que sua opção estética seja consciente. Quando tomamos o importante passo de dissociar a barriga gorda do julgamento de beleza, temos que dar às pessoas que queiram tomar a decisão de continuar gordas os instrumentos para administrar seus riscos. A vida é feita de riscos: toda ela. Toda modificação corporal inclui riscos. Colocar piercings e fazer tatoos implica riscos.

 

A barriga em outras culturas

Se a barriga chata é tão rara que pode ser classificada como mais uma invenção formolátrica, então como se relacionam e se relacionaram outras culturas com as formas das barrigas femininas?

Acho que todos conhecem a Venus de Willendorf , uma escultura datada de 22 a 24 mil anos atrás.

Figura 4 – Venus de Willendorf

Ninguém sabe exatamente se ela era uma mulher, uma deusa ou mesmo brinquedos. O que parece claro é que, para estas sociedades, a barriga feminina não era chata.

Figuras antigas mais orientais, como na Ásia e Índia, mostram cinturas acentuadas, mas não barrigas chatas.

As mulheres nuas retratadas na Renascença e mesmo em períodos artísticos mais recentes certamente não tinham barrigas chatas.

fig 5

Figura 5 – mulheres retratadas na arte

Se observarmos as bailarinas tradicionais do oriente (as várias “danças do ventre”), veremos que muitas das artistas reverenciadas são, segundo padrões formolátricos, barrigudas (vale a pena assistir, são belíssimas as danças):

 


Alguém conseguiu não se emocionar assistindo estas bailarinas?

O significado ritual das danças do ventre asiáticas é controvertido. Lucy Papas, formada em etnomusicologia pela Universidade da Califórnia, sugere que a dança do ventre seja o último vestígio de um ritual relacionado ao parto, reverenciando a grande divindade feminina. Alguns autores acreditam que sua apropriação e dessacralização no ocidente, como expressão vulgar, causam ressentimento nas sociedades de origem . É possível que a introdução de bailarinas com barrigas cada vez mais chatas nos shows acompanhe esta tendência.

Finalmente, ganha um toblerone quem encontrar uma barriga chata nas imagens abaixo de jovens mulheres indígenas brasileiras.

fig 6

Figura 6 – mulheres indígenas brasileiras

 

As barrigas reais

As barrigas reais são incrivelmente diversas. Temos barrigas magras, gordas, flácidas, fortes, grávidas, com cintura, sem cintura, com mais ou menos pele.

Todas são barrigas femininas reais. A maior parte é mais para gorda.

Barriga feminina tem todo tipo de simbolismo associada a ela: é a sede da produção de bebês, pois é onde fica o útero. Se por esse motivo ou não, em inúmeras tradições filosóficas e corporais orientais, é também a sede da energia vital.

A barriga é a primeira coisa que protegemos quando ameaçadas. É a primeira coisa chutada quando, num ato de violência, alguém é derrubado no chão. É a região mais desprotegida do corpo e ao mesmo tempo onde mais se concentram órgãos vitais.

A barriga é o que nos mantém bípedes completos, junto com as demais estruturas do “core”.

A barriga é muito mais do que a parte do corpo merecedora de foco para perda de peso.

Duas mulheres – uma parteira e uma educadora sexual – montaram um projeto chamado “projeto barriga”, com o intuito de retratar barrigas reais. Elas recebem e reproduzem imagens verdadeiras de barrigas femininas. Veja aqui o projeto.

Bonito, feio, gordo, magro?

A associação da barriga gorda ao “feio” não é recente e é socialmente contextual. Cada vez mais contextual, à medida que avança o enraizamento da formolatria no imaginário social.

O peso em cima das mulheres no que diz respeito à barriga é ainda maior: bunda e perna “meio gorda”, até vá lá. Mas tem que ter a famosa cintura. A exigência da cintura como item determinante da beleza feminina não é recente. Os corpetes são parte do vestuário feminino desde o século XVI. Acredita-se que foi então que Catarina de Medicis baniu as cinturas grossas (?!!) da corte francesa. A partir de então, corpetes para apertar as barrigas das mulheres foram produzidos com diversos materiais, incluindo ossos de baleia e metal.

Este episódio é ilustrativo quanto ao grau de arbítrio contido nos parâmetros do belo, em qualquer período histórico.

Embora seja ingênuo e impossível simplesmente declarar liberdade em relação ao arbítrio cultural na construção do belo, pois isso seria equivalente a descontextualizar-se socialmente (não existe), não devemos exagerar no relativismo, saindo do fio da navalha epistemológica aqui: é importante sim que se lute pela diversidade das possibilidades da construção do belo. Sim, será sempre contextualmente construído. No entanto, podemos e devemos desconstruir a “naturalidade” ou “superioridade” de um constructo em relação a outro.

Cinturas grossas podem ser belas, assim como cinturas finas ou retas: basta que um grupo crie um consenso quanto a isso e seja suficientemente empoderado para suportar a rejeição de construções alternativas.

Uma última nota quanto à cintura é importante: para uma mulher com baixa gordura corporal, ter ou não cintura depende de uma dimensão anatômica que chamamos de distância bi-ilíaca (“largura da bacia”). No período mais difícil da minha vida, em que até pequenas veias eram visíveis sob a pele da minha barriga de tão magra e fraca que eu estava, eu não tinha cintura. Nunca tive. E tinha uma “barriguinha” protrusa. Como tudo no corpo humano, isso também vem em muitos formatos diferentes.

entre a estética e a saúde

Mas o que dizer para uma mulher com uma grande quantidade de gordura visceral e sub-cutânea, evidentemente com riscos de saúde conhecidos, como síndrome metabólica, resistência a insulina e, em última instância, diabetes?

Falar a verdade. A verdade é a informação de que a opção dela inclui um risco. Qual de nós não fez alguma opção na vida associada a alto risco? Que jogue o primeiro brigadeiro. Primeiro, ninguém tem que emagrecer ou perder barriga porque é feio; segundo, ninguém tem que perder barriga porque faz mal à saúde. A verdade é que ninguém tem que perder barriga. Se, e somente se, a mulher assim o desejar, existem formas saudáveis para se alcançar mais esta modificação corporal.

Antes de mais nada, no entanto, ela tem que ser protegida dos juízos de valor produzidos pela formolatria e veiculados por todo mundo, até mesmo as pessoas que a amam.

 

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