Mãos – série O Açougue

Na série “Açougue”, estamos examinando cada corte do corpo feminino para entender como sua “feminilidade” foi socialmente construída segundo agendas opressivas às mulheres. Vimos como a bunda , o peito  e a barriga  feminina são construídas segundo estéticas desumanizadas e ditadas por interesses estranhos às mulheres e como estas estéticas ferem até mesmo as funções fisiológicas e diversidade anatômica.

Neste capítulo, em vez de começarmos pela (per)versão feminina do corte em questão, vamos discutir a mão humana. Nesta discussão, vamos percorrer os temas do trabalho, da guerra e agressão, da transformação do mundo, do prazer e o último ítem é surpresa.

figura 1

 A mão, o trabalho e a guerra

Olhe para suas mãos. O que você está fazendo agora? Di?… gitando! Você pode ter aberto seu computador ou equipamento móvel para recreação, por motivo nenhum, porém, o mais provável, é que ele seja uma ferramenta do seu trabalho. O que quer que você faça com ele depende dos seus dedos e, portanto, da sua mão.

Se você fizer rapidamente uma lista de 10 ocupações, a função da mão do trabalhador nelas será maior ou menor, mas sempre será central. O papel da mão no trabalho é tão fundamental que os primeiros discursos científicos sobre ela, vindos tanto das ciências sociais, da economia e da anatomia, atribuíam a esta relação o papel central na evolução de nossa espécie. O homem teria se humanizado através de uma evolução combinada da anatomia da mão e do neocórtex cerebral mediada pelo trabalho (Engels 1883 ). O homem era o homo habilis, o homem que trabalha. Os artefatos neolíticos de pedra lascada recuperados em sítios arqueológicos foram interpretados à luz destas teorias (seriam utensílios) e a pegada humana, única entre os primatas, com o polegar em oposição aos dedos, foi descrita vis a vis às mesmas.

Os primeiros estudos foram conduzidos por Napier . Este pesquisador procurava explicar um registro fóssil encontrado em 1960, em Olduvai, Tanzania, datado de 1,7 milhão de anos atrás, depois classificado como sendo do gênero Homo. O fóssil justificou a identificação da espécie Homo habilis (“homem hábil”) como a primeira de nosso gênero. Napier abriu caminho para o estudo da evolução da mão e pegada humanas. As duas pegadas fundamentais, detalhadas depois em estudos subseqüentes, foram as de precisão e de potência.

fig 2A

 

fig 2B

Figura 2 (2.1, pegada de precisão; 2.2. pegada de potência) ilustrações Iara Coutinho

 

Em 2003 , Richard Young  reviu os dados paleontológicos e observou uma discrepância fundamental: a pegada humana, bem como o neocortex do homem moderno precedem a produção dos artefatos de pedra lascada. O trabalho publicado com estes dados propõe uma interpretação inteiramente diferente sobre a mão e a pegada humana, numa verdadeira substituição paradigmática. A pegada humana teria sido resultado de uma outra linha de pressão evolutiva. Em vez do trabalho, a guerra. Bandos de humanóides desbravando ambientes hostis teriam sofrido pressão seletiva para a sobrevivência dos mais hábeis em lutar, matar e guerrear, e não em produzir utensílios.

As pegadas de precisão e potência foram re-interpretadas como pegadas de arremesso e de golpe (“throwing” e “clubbing”).

Onde entra o trabalho, então? Como função posterior de uma espécie já selecionada como hábil para matar (caçar, se defender e dominar), alterar as relações com seu ambiente e ocupar novos nichos ecológicos.

A transformação do mundo, portanto, deve ser vista como resultado não apenas do trabalho humano, mas também da violência que ele é capaz de exercer. O novo requer a destruição do velho para sua emergência e o papel da violência na cultura humana não me parece muito controvertido. Toda transformação é violenta e toda ocupação de novos espaços é destrutiva. Quando, hoje, nos organizamos para combater a injustiça (o exercício de violência socialmente avalizada de grupos mais empoderados sobre os menos empoderados) ou a destruição do ambiente (a modificação irracional e injustificada das relações ecológicas em detrimento de todas as espécies, inclusive a nossa, e da degeneração de parâmetros ambientais saudáveis), o que estamos fazendo é negociar o exercício da violência e da destruição segundo os vários interesses em jogo, incluindo a continuidade da História humana no planeta.

Pronto: já temos dois dos quatro elementos importantes para refletir sobre a mão. Temos o trabalho e a transformação do mundo.

Neste momento convido minhas leitoras para um coffee break com um pouco de música. Se não quiserem, é só pular para as conclusões seguintes, mas prometo que as músicas são legais. A primeira será certamente desconhecida das mais jovens e talvez de boa parte das mais velhas também. Chama-se “Plegaria de um labrador” (oração de um camponês) e eu escutei pela primeira vez num quartinho escuro qualquer, numa fita k-7 vinda escondida na mala de alguém que tinha estado na Argentina, aquele lugar onde podia tudo. Vem do tempo da inocência (a minha, pelo menos). A segunda é “Hands that built America”, do U-2.



Embora este não seja um capítulo sobre a revolução latino-americana e nem sobre a construção da America, as duas músicas nos ajudam a refletir sobre seu tema, que é a mão da mulher. Leia os seguintes trechos das letras:

“Levantate y mirate las manos. Para crecer, estrechala a tu Hermano. Tu, que manejas, el curso de los ríos. Tu, que sebraste, el vuelo de tu alma”.(Levante-se e olhe suas mãos. Para crescer, estenda-a a seu irmão. Tu, que modificas o curso dos ríos. Tu, que semeaste, o vôo de sua alma)

“These are the hands that built America (Russian, Sioux, Dutch, Hindu) Oh, oh oh, America (Polish, Irish, German, Italian)” (Estas são as mãos que construiram a America (Russas, Sioux, holandesas, hindús). Oh, oh oh, America (Polonessas, irlandesas, alemãs, italianas) )

Como é uma mão tão poderosa assim? Uma mão que muda o curso dos rios, que derruba poderosos, que constrói edifícios imensos e, enfim, faz a História e a Civilização? São mãos fortes e cascudas.

É em oposição a estas mãos que trabalham e transformam o mundo, que comandam e dominam, que a mão feminina é construída como prescrição formolátrica .

A mão feminina: 1. os movimentos

Separemos três ítens quanto às prescrições para a mão feminina: o movimento, a pele e as unhas.

Os movimentos femininos com as mãos são caracterizados pela flexão incompleta das articulações das falanges, ou seja: permitem a verificação de que se trata de uma mão fraca.

Video: Movimentos com flexão completa das articulações

Enquanto o típico gesto masculino com as mãos é o firme fechamento do punho, com flexão completa e isométrica das articulações das falanges (“punho cerrado”), o gesto feminino é o dos movimentos fluidos e contínuos, sem agarre:

“Practice pretty and feminine gestures. Pick up a vase or a flower as if youenjoyed handling it. Don’t GRAB. Learn to use your hands femininely and gracefully.” (pratique gestos femininos bonitos. Levante um vaso ou uma flor como se os apreciasse. Não AGARRE. Aprenda a usar suas mãos de maneira feminina e graciosa). Fonte 

A habilidade feminina é em geral associada a atividades que utilizam as pegadas de dedos (“pinching”). Típicas atividades de habilidade feminina são os artesanatos com fios e contas, por exemplo.

Embora hoje contemos com aparatos tecnológicos que em grande medida substituem o esforço humano, é seguro dizer que a transformação profunda da realidade requer força e agarre. A mão que não agarra não é capaz de utilizar com proficiência uma ferramenta de construção e destruição, como uma enxada, um martelo, uma lança, uma espada, uma britadeira ou mesmo carregar objetos de um lugar até outro.

Assim, as prescrições dominantes quanto aos movimentos da mão feminina restringem sua participação no universo do trabalho, especificamente do trabalho transformador e da transformação do mundo em geral.

Talvez por isso, desde que o vi pela primeira vez, simpatizei com o símbolo internacional do movimento feminista: até então, o punho cerrado era apenas um símbolo de luta encarnado numa figura masculina. No meio do círculo com cruz, no entanto, significa o punho cerrado da mulher, um punho que pode fechar, exercer força, trabalho, criação e ação transformadora (alternativamente, temos as figuras de mulheres com o cotovelo fletido, exibindo o bíceps, e o punho cerrado, na mesma linha interpretativa).

figura 3

Figura 3

A mão feminina: 2. A pele

As prescrições quanto à pele femina denunciam tanto as restrições quanto à participação feminina no universo do trabalho e da transformação do mundo, quanto a rejeição sexual à mulher idosa. A mão feminina é lisa, macia e sem manchas.

A pele é o maior órgão do homem. Sendo nossa espécie uma das únicas entre os vertebrados sem uma proteção externa por pelagem ou couraça, nossa pele tem adaptações interessantes a esta nova condição “pelada”. Uma delas é a queratinização adaptativa, ou calejamento. Trata-se de uma acumulação de células chamadas queratinócitos totalmente diferenciadas. Estas células morrem e permanecem como uma proteção impermeável e mecanicamente resistente para a área sob ação abrasiva ou de impacto crônico.

Assim, a calosidade na mão é uma marca adaptativa de seu uso continuo para alguma tarefa física. “Estar calejado” é uma metáfora para ser experiente em algo. Ora, a mão feminina prescrita pela formolatria é a mão de alguém inteiramente inexperiente no que se refere a qualquer atividade de intervenção física no mundo: é uma mão lisa, sem marcas, macia e, portanto, sem uso.

A mão feminina é também uma mão jovem. A prescrição de que a mulher deve dar especial atenção à mão pelo fato de ser ela o verdadeiro indicador da idade revela que para a manutenção do “status” feminino, é importante resistir a todo custo ao envelhecimento. A mão idosa não é uma mão feminina: é uma mão asexuada.

A mão feminina: 3. As unhas e o sexo

As unhas são um capítulo especial na prescrição formolátrica da mão feminina. A decoração das unhas através de tintas coloridas (esmaltes), pedrinhas ou outros ornamentos tem uma longa história e entra no multi-facetado reino da ornamentação corporal: tem algo de lúdico, algo de marca social, algo de artístico e algo que diz respeito à misteriosa atração aparentemente inata pelo belo e pelo ornamento, construídos social e contextualmente como forem.

Ornamenta-se unhas por todos estes motivos.

E a unha longa? A unha longa e ornamentada é uma outra história. A partir de um certo comprimento, a unha compromete os movimentos da mão. Primeiro, impedem um fechamento firme e completo do punho. Segundo, são impecilho para a manipulação de diversas ferramentas. Esta por exemplo que utilizo agora para criar o texto que você está lendo (impossível digitar com unhas longas).

No entanto, as unhas longas impedem o emprego da mão da mulher em outra esfera de intervenção: o sexo. Uma unha excessivamente longa é um impecilho não somente para a masturbação como para o sexo entre mulheres.

A maior fonte de prescrição de unhas longas, curiosamente é a indústria pornográfica mainstream. Tendo em mente que esta indústria é fortemente heteronormativa, tentem lembrar (as imagens não podem ser reproduzidas aqui) de imagens fotográficas ou filmes pornográficos com mulheres com unhas longas. Alguém realmente se convence de que a manipulação sexual feminina com unhas longas é eficiente? É claro que não! Mas como tudo na indústria pornográfica mainstream, é um teatro para a estimulação erótica masculina. Não importa realmente se é ou não realista que as duas moças estejam de fato conseguindo confortavelmente enfiar o dedo na vagina uma da outra com unhas imensas. Importa que o espectador compre esta (e outras) mentira e se estimule com ela.

figura 4

Figura 4

O problema é que a prescrição de unhas longas não fica restrita às atrizes de filme pornô. Como tudo desta indústria, através do sistema formolátrico, ela “vaza” para a sociedade em forma de prescrição. Ainda que não consigam administrar unhas pornográficas na prática, as mulheres tentam, porque mais este ítem foi acrescentado ao menu de prescrições do ideal de beleza feminina.

 

Eu e minhas mãos

Eu tenho uma coleção de mais de 40 esmaltes de cores as mais diferentes. Vários tons de azul, verde, laranja, roxo e tantas outras que vou achando interessantes. Se eu tivesse tempo, trocaria de cor duas vezes por semana. Olho para minhas mãos e parecem colarezinhos de contas coloridas. Basta um algodão com acetona e apaga-se uma cor para substiuí-la por outra. Acho isso muito divertido.

Desde o primeiro capítulo da série “açougue”, sempre insisti que existe um belo. No entanto, o belo ideologicamente prescrito pela indústria da beleza não apenas impede a construção do próprio belo, num diálogo com quem quer que a pessoa escolha como interlocutor, como introduz obstáculos a manifestações corporais espontâneas, necessárias e cinesiologicamente saudáveis.

Foi assim com a bunda, com o peito, com a barriga e não é diferente com a mão: a prescrição formolátrica para a mão feminina é um obstáculo ao seu exercício para o trabalho, para a transformação do mundo e para o sexo.

E do que mais a mão participa? Muitas coisas. A mão faz arte, a mão processa alimentos (“cozinha”), a mesma mão que agride e mata, que limita o outro e protege a si, também manifesta amor e oferece apoio.

Para finalizar, quero apresentar as minhas mãos. As minhas mãos são mãos que trabalham, que transformam o mundo e que me dão prazer.

São mãos que fazem uma quarta coisa: viabilizam transcendência.

Aqui está a transcendência. Ela acontece neste espaço entre eu e a barra. A barra carregada com ferro, ferro vindo das profundezas do útero da Terra para as minhas

MÃOS.

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